1 - O RETORNO

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Sgt. Carlos

Hoje fui a nossa casa. Nossa. Nós. Essa é uma coisa que vem me faltando. Eu e você. Lembra como era? Entrei, a porta fazia o mesmo rangido que tentávamos tirar. Vi a mesma casa, nossos quadros, tinha várias fotografias nossas também.

Peguei uma delas. Você sempre reclamava de minhas caretas, sempre me pedia para dar um sorriso, o mais engraçado que , ao contrário da maioria de minhas fotos, nessa eu dava um largo sorriso, sem caretas, fitando por mais alguns segundos, percebi que até meu olhos sorriram ao te ver

Meu Deus como nosso cantinho era simples! Tu sempre falava que queria uma casa com varanda, para olhar o pôr do sol deitada em uma rede, lembro-me como preparava cada detalhe para a casa ficar pronta antes de nosso casamento "já quero estar com tudo ajeitadinho" você dizia, "vou fazer até uns tapetinhos de crochê, tu vai ver !"

Me dirigi até o quarto, no caminho, percebi aquela manchinha de sangue no carpete, quando você tinha cortado o dedo cozinhando, e veio até o quarto para fazer alguns curativos. Você lembra? É, eu me lembro. Me lembro também quando você comprou aquele cachorrinho infernal, que fez coco pela casa inteira e tivemos que doá-lo.

Me sentei a frente de seu piano.

As teclas estavam cada vez mais empoeiradas e meus dedos, suspensos, não as tocavam. Mas era óbvio que as notas gritavam, e, se você cerrasse um pouco os olhos, veria todas as claves de sol, fá, e dó espalhadas pela sala. Os sustenidos e bemóis eram os mais pessimistas, estavam jogados no canto esquerdo do aposento, não faziam nada, mas era evidente a tristeza em seus olhos fechados.

As pausas sentavam no meu colo, os pés balançando, felizes por nunca serem tão usadas assim. Os dós eram tristes, os mis ainda balançavam meu cabelo e sussurravam à minha orelha, tentando me animar. Mas não, a música não vinha. Uma vez ou outra, meu indicador tremia e então uma nota solitária dançava, a poeira lançando-se num vôo invisível e gracioso. As pausas se irritavam com isso e me arranhavam.

No entanto, eu tinha uma partitura. Era a mais bela sinfonia, todos me diziam. Era pura e tocava o coração. Linda. Mas todos já a conheciam, todos juravam que a sentiam penetrando por todos seus ossos. Então ela era chata para mim.

Mas por que eu não tocava, então? Eu nunca precisei de partituras, eu fazia minhas músicas, dançava ao meu ritmo e fazia do meu jeito. Gabava-me disso! Mas aquela música...

Ela era tão doce, tão grudenta, simplesmente colava em minha mente e em minha face, eu não conseguia respirar. Aquilo me sufocava! E tudo que eu podia fazer era tentar nadas à superfície, procurando um descanso, tentando me livrar daquela sensação de incapacidade. E então era minha sentença: enquanto eu não conseguisse voltar a ser que eu era - anormal, incomum, peculiar - eu seria só mais uma pessoa a tocar a mesma velha sinfonia.

"O amor não é bom - é uma ordem: nos faz dançar mesmo que não seja nossa intenção, e não podemos mudar o passo." você costumava tocar em enquanto eu ficava no computador e preparando meus relatórios.

Tudo esta exatamente como antes.

Mas não tive coragem de permanecer nessa casa por muito tempo, tudo me fazia lembrar de você... Era assim, o a mesma cozinha que você, rindo, sujou meu rosto com a massa de bolo de chocolate, a mesma sala que você tinha a covardia de fingir que ia me beijar só pra me roubar o controle da TV, o mesmo banheiro onde você tinha a mania horrível de deixar a calcinha pendurada no registro do chuveiro, tudo, até seu suéter azul continuava no chão do quarto.

Não é o tempo que faz a gente esquecer, é o que acontece nesse tempo. A primeira vez que ela não senta do teu lado numa roda de amigos. A primeira vez que ela não te liga no teu aniversário, primeira vez que aquela música é só uma música e não a música de vocês.

O primeiro amor acaba com as primeiras coisas que acontecem depois dele e vai ter uma primeira vez que você vai olhá-lo e não sentir absolutamente nada, só dar um sorriso e dizer pro seu novo amor "aquele foi meu primeiro".

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⏰ Última atualização: Oct 02, 2020 ⏰

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