Em matéria de Young Jae Young a única unanimidade era que foi precoce em tudo, absolutamente tudo. Nasceu um mês e meio antes do prazo, começou a andar com menos de um ano e falou pai e mãe ao mesmo tempo. Já aos treze, foi a primeira da vila a ficar órfã e sair da escola. Tendo atropelado tantas filas em tão tenra idade, não seria de surpreender que também saísse na frente em matéria de casamento e foi ao altar grávida de gêmeos. Era o primeiro ano do governo do ditador Park Chun Hee, sendo o esposo um jornalista de língua solta e sangue quente ela terminou virando também a única viúva de seu grupo de amigas.
Apressada que foi na vida não saiu diferente morte: caiu duríssima aos cinquenta e dois anos. A razão? Ninguém pediu autópsia, então só Deus e o Cão saberiam dizer a resposta. Deus porque sabe todas as coisas e o cão porque a recepcionou no quinto dos infernos e ele não era famoso por conversar muito com estranhos.
A defunta em questão tinha dois filhos adultos nos seus trinta e cinco anos, dois netos adolescentes tão divertidos quanto pessoas de quatorze anos conseguem ser. Porém sua devoção ia para Bouillabaisse, um gato da raça ragamuffin e com pelo branco e cara preta.
No dia do enterro todos jaziam na sala em silêncio sepulcral. As lágrimas foram gastas no velório público e dando esclarecimentos para a imprensa. O único que ainda soluçava e limpava o rosto era o padre alto, jovem e bonito, ele alisava o gato, estavam estranhamente familiarizados.
— As vezes penso que ela vai levantar e me mandar trocar a clínica de aplicação do botox.— A filha falou calmamente e levantou para olhar o caixão, velado à moda ocidental, já que a mãe deixou esse desejo escritíssimo, pois se cria bonita demais para ser cremada e atirada numa paisagem idílica qualquer, exigia ser enterrada inteiríssima, usando seu batom bordô e apesar de terem diferenças não iriam contrariar vontades de defuntos, principalmente os problemáticos como a mãe. Quase todos ali sentiam arrepios só de lembrar da pose de tenente e a eterna disposição para mandar fazer algo aqui e acolá.
—Devia trocar. Tá com a bochecha borrachuda.—
O filho respondeu mesmo sem ser convidado à conversa, ele virava uma dose de whisky atrás da outra e segua quase imóvel e com as pernas cruzadas forjando um ar despreocupado, era o mais tenso da sala, gostava da mãe e ainda não era capaz de racionalizar como levaria seus dias sem a dose cotidiana do "veneno" que a genitora lhe pingava nos olhos. Ao tagarelar com a irmã somente olhou de relance para o jovem e bonito padre. Achava que aquele lá dava vontade de tudo, menos de rezar.
— Vai pra puta que pariu.— A filha sempre foi conhecida por ter pouca paciência e a boca suja. Talvez tenha sido por isso que não sobreviveu na indústria de entretenimento coreana.
— Ela não está em condições de me aceitar de volta. — O filho sempre foi mais paciente e embora fosse menos talentoso, conseguiu se firmar melhor no ramo. Só no ano atual tinha um filme e duas séries agendadas.
A piada fora de hora empalideceu a mulher que veja bem, já era bem pálida. Foi miss Coréia e garota propaganda de mais de quinze produtos de clareamento justamente por não ter muitas cores.
Os netos seguiam mexendo no celular. O menino tentava comprar ingressos para o show de Dua Lipa, a menina via um vídeo de aplicações promissoras e parecia entender um pouco daquilo. Aproveitando o começo da discussão, ambos entrelaçam os dedos buscando conforto para a morte da avó e a imaturidade dos pais, coisa que terminou por aproximá-los tanto que viraram a única companhia um do outro. Namoravam há 100 dias e deixaram as comemorações para quando virassem um ano, se virassem , já que para terminar bastava estar namorando.
— Seu babaca. — A filha e o filho não tinham intenção de interromper a lida. Eram tão habituados a brigar que se sentiam desconfortáveis em tempos de paz.
VOCÊ ESTÁ LENDO
BOUILLABAISE 𝓬𝓸𝓷𝓬𝓵𝓾𝓲́𝓭𝓸
Short StoryApós a morte de uma milionária, seus herdeiros discutem sobre quem ficará responsável por alimentar Bouillabaise, o gato. A reunião se dá em pleno velório e conta com a participação dos filhos gêmeos egocêntricos, dos netos que estão a esconder um...