Conflito danoso

20 0 0
                                    


Mickey tomava seu café da manhã, com tranquilidade distinta de outros dias. Já havia um tempo que em setembro ele não ia para a escola, já que as ruas estavam um enorme caos, com garrafas de vidro sendo lançadas contra as cabeças de protestantes pelos direitos de independência, estes muito longe de serem vistos naquela região. Mickey comia seus crepes com queijo, logo após dava beiçadas na sua caneca vermelha preenchida com leite de soja açucarado. Esfregava os longos e bagunçados cabelos negros para trás da sua orelha de abano, coberta pelo mesmo, e assim começava a entreouvir seu pai que falava ao telefone.
Marco Juca era militar. Ele nasceu na costa mexicana, e ainda jovem se formou no batalhão da Marinha do país. Em missão aos Estados Unidos, em Nova Iorque ele conheceu Eduarda Silvaneira e um romance se desenrolou, embora não se mantivera. Depois dos dois filhos, começaram-se discussões intermináveis. A família de Eduarda, há muito tempo, é considerada a portadora da maior fortuna no mundo inteiro, sendo mais ricos até que a família real inglesa. E isso rendia uma pensão invejável após o divórcio, que afastou o pai e o pequeno Michelangelo Juca Silvaneira até mesmo daquele país, se mudando assim para a China. Mickey era jovem e Marco já entendia bastante do mandarim, então não fora uma grande dificuldade para se adaptarem.
E as palavras saíam da sala e iam pelos ouvidos do guri.
-Jean? A... – hesitava em falar – Eduarda, está aí?
Mickey recordava daquele nome, mas sem muitas memórias. Só podia ser o Tio Jean, irmão mais velho de sua mãe e dono da casa onde anteriormente eles moravam. O menino se mudou com o pai aos seus cinco anos, então não se recordava de muita coisa do antigo lar.
-Alô? Acho que não, deixa eu ver – Marco sempre deixava o telefone no viva-a-voz, então Mickey ouvia da sala as respostas de seu tio – Não. Ela tá na editora agora.
-Putz... – eles conversavam em inglês. Mickey não lembrava de tudo da língua, faziam sete anos que não praticava, porém tentava entender tudo – Acho que ele vai agora, ao fim da tarde.
Mickey então começava a suspeitar da conversa. A quem seu pai se referia? E então se assustou com uma única hipótese que surgia baseada em certos fatos. Vários de seus materiais pessoais estavam guardados, mas o menino pouco questionou as malas na sala daquela casa.
Distraído com suas ideias perdera o final da discussão por telefone. Então o pai entrava na cozinha aos bufos, lentamente se aproximando da mesa e sentando-se na cadeira envernizada ao ponto de rubor. Olhava pro filho que retribuía, franzia sobrancelhas e ganhava o mesmo de resposta. Puxava um crepe da vasilha e dava uma grande abocanhada no mesmo, que despedaçava migalhas que caíam sobre seu cavanhaque. Mickey dava uma breve risada fanha para dentro, além de mover o sorriso à bochecha esquerda, formando uma de suas covinhas. Diferente do habitual, Marco não sorriu de volta, mantendo uma feição um tanto desmotivada, que levou a ele finalmente formar uma frase à fora.
-Filho. – Piscava com força e pesar com certa frequência– você percebeu que... talvez não estejamos mais seguros aqui, não é? – esperou o filho responder com um gesto facial – Pois bem. Talvez fosse a hora de voltar a morar com sua mãe.
Mickey fechava o rosto. Fazia muito tempo que ele não pisava lá, tanto tempo havia quanto duvidas surgiam. Seus primos e tios ainda gostavam dele? Ou até mesmo seu irmão e mãe? Como seria a adaptação lá? Mas então ouviu-se o concluir infeliz da proposta.
-Mas... Como sou militar, devo ficar por aqui e ajudar a defender nosso país.
Não se sabia mais como seria. “Irá sozinho para casa” era uma ideia que complicava a cognição de Mickey. Ele não imaginava aquilo depois de todo o tempo sem cartas, e-mails ou qualquer contato com a parte materna de sua família.
Mal percebendo, já estavam no aeroporto. Mickey por ainda muito deprimido com a ideia, embora não houvera sequer discussão por mais que houvessem argumentos para querer ficar ali com a Srª.Huang enquanto recebia notícias próximas do pai, sem precisar modificar por completo seu viver. Mickey levava apenas duas malas e uma mochila vermelha com bottons personalizados com caracteres chineses, que o menino levou alguns anos para entender o que de fato diziam.
-Filho, vai ficar tudo bem - O famoso como Tio Macarrão na antiga morada, consolava seu filho mais novo tão tenso pelo existir próximo – Seu irmão, sua mãe, estarão lá. Sempre serão sua família, tanto quanto eu, e por isso não há razão para entristecer – isto ele dizia em inglês, apesar do seu marcante sotaque latino que sempre dificultou sua fala. Abraçou-o na escadaria do avião no qual o pequeno embarcaria, limpou a lágrima reluzente que escorria dos olhos do menino e se afastou, andando de costas enquanto acenava, virando-se ainda com a mão erguida.
Sumia no fechar da porta automática que dividia o saguão do aeroporto com o seu pátio. Mickey esfregou as costas da mão contra sua bochecha, subindo até os olhos limpando suas últimas lágrimas enquanto subia até o avião. Andava um pouco, e logo desligava seu telefone e seu Nintendo 3DS como pedia a comissária, isto antes de sentar ao lado de um senhor de idade, que o encarou fixamente com um sorriso. Ele era mais baixo que o pouco mais de um metro e meio de Mickey e tinha os braços flácidos. O garoto supôs que ele era um homem muito forte durante seus melhores anos, e então sorriu de volta. O velho espremia os olhos enquanto olhava para o menino, como se tentasse reconhece-lo.
-Ai, ai – o homem começou a recitar – lembras a mim de minha sobrinha. Sim, sim e também o meu sobrinho. Tomara que não tenhas o bigode horroroso que ele tinha, mas sinto que vais querer a altura. Bah, mas que menino grande! – Mickey se assustou com o primeiro proferir, pois ele falava em inglês, como se soubesse algo da vida anterior do menino, por mais que nunca tenho o visto – Sabe, faz tempo que não vejo minha família, estou indo agora para a cidade deles fazer um pequeno trabalho, mas não poderei visita-los, sabe?
E então começou a ouvidoria. Mickey passou boa parte da viagem escutando as histórias de guerra, fortuna e queda que vivera, por mais que o garoto tentasse encarecidamente ler para si um dos seus mais de quinze livros em sua mochila: oito em chinês, cinco em inglês e dois em espanhol, para treinar os ensinos básicos que seu pai deu de sua língua materna. O menino ouvia as conspirações governamentais que o velho conheceu, que seriam muito mais interessantes caso ele soubesse narrar seus dizeres em começo, meio e fim, porém a viagem atemporal do conto confundia Mickey, que não entendia bem o que escutava.
Dormiu durante a noite que virava dia. O fuso-horário impressionava a ele. E então ouvia que faltava menos que meia hora para que chegasse em Nova Iorque, tempo aquele que se passou em segundos durante a lida de 1984, livro favorito de Mickey.
E lá estava, na terra de uma família que não viu por sete anos. Desceu as escadas em uma fila, na qual não viu o senhor que estava a seu lado, parecia que ele teve alguma dificuldade com suas bagagens. Mickey tomou as suas na traseira do avião e levou ao porta-malas do táxi que o levaria para aquela casa tão outrora vista. Entrou no carro aos berros do motorista:
-Esperava por um convite escrito, é? – com uma expressão raivosa, dava a primeira experiência naquele país ao menino – Fiquei a manhã inteira esperando! Bom que estejam pagando tão bem... – e terminava aos resmungos.
E então partia. Estava cada vez mais longe do que verdadeiramente considerava um lar. Aos resmungos do motorista pelo transito pesado e pela discussão a respeito dos impostos, que não pareciam tão malignos quanto os próprios na China. Após uma hora de viagem os dois chegavam numa casa pouco convidativa, com mais de quatro andares e pelo menos vinte metros de altura, que possuía paredes clássicas de madeira. O bairro era inteiro constituído de grandes mansões pelo que Mickey vira durante o passeio, mas aquela casa era bastante simples e de igual a vizinhança só tinha o “grande” como adjetivo.
Saiu do carro. Retirou suas bagagens e em menos de um segundo após fechar o porta-malas viu o carro disparando e sumindo na dobra ao final da rua. Irresoluto com aquela experiência inicial, subiu a escada que levava a uma pequena varanda, com uma rede de descanso que ia de um nó no fino e retangular pilar de madeira pintada com branco a um gancho na parede. Branco e riscado havia outro pilar, idêntico as cercas aos lados da escada que encostavam nas paredes azuis. Mickey subia com suas pesadas malas e as colocava em pé a seus lados, largando-as e então pressionando o botão da campainha, que produzia um som estridente que ecoava pelos longos andares da casa e saíam por todas as janelas, voltando ao garoto e o aterrorizando. Ouvia os passos de dentro se aproximando da porta, arregalava seus olhos puxados e levantava o beiço.
Via a porta se abrir. Ela era empurrada por um homem alto, de cabelos negros como os de Mickey. Ele tinha a barba muito bem raspada, os cabelos um pouco mais curtos que os do menino e formavam uma franja elevada acima de sua testa. Os lábios eram bem vermelhos e que contrastavam com o nariz fino, pontudo e rosado, que levantava ao falar do homem:
-Mickey? Bom dia!

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Feb 02, 2020 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

O Clube do LivroOnde histórias criam vida. Descubra agora