Fogo de São João

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— Chefe, o fogo já tá pegando na parte leste — era o que dizia a voz que saía do rádio comunicador. O homem estava olhando para a árvore que ele próprio havia acabado de pôr fogo para se certificar de que seu trabalho tinha dado certo.

— Muito bom, se juntem ao grupo do pessoal que ficou com a parte norte, lá é onde vai ser mais complicado terminar o trabalho com toda a umidade que tem — então parou um instante para pensar e acrescentou preocupado — e não esqueçam de ser rápidos, a noite de São João pode ser a mais longa do ano, mas quanto menos tempo levarmos, menos chances temos de nos pegarem.

— Certo chefia, avisamos assim que chegarmos lá — com isso o aparelho fica completamente silencioso e o homem o guarda no bolso da calça surrada que usava e era dupla inseparável das botinas que sempre calçava em incursões dentro do mato. Usava uma blusa simples de botão por cima e tanto a calça quanto a blusa eram de cores cinzentas de maneira a não chamar a atenção no ambiente noturno, além de um chapéu marrom típico de gente do interior.

Começou a andar pela escura floresta cujas árvores ilesas começavam a ser iluminadas por suas irmãs que estavam sendo carbonizadas vivas, num feixe laranja rubro que parecia iluminar mesmo sem realmente dar para enxergar qualquer coisa. Entretanto, aquele homem de modos simples era alguém acostumado a desbravar a mata fechada mesmo no escuro ou em meio a um incêndio, ele era um jagunço cujos serviços criminosos eram contratados por alguns grandes do agronegócio e tinha um pequeno grupo de homens a seu serviço.

Seu rosto bronzeado pela lida de trabalho embaixo do sol e com incêndios estava completamente suado, passava a manga do braço na tentativa de secar um pouco e já tratava de acender a última parte que era de sua responsabilidade, sorriu ao ver o trabalho sendo feito e as árvores começando a espalhar o fogo por conta própria — Agora é esperar a natureza terminar o meu trabalho — olhou então para seu relógio contra a luz tentando enxergar a hora — e ainda está para dar meia noite, acho que vai dar tempo de beber umas rodadas de quentão na cidade ainda — quando tinha terminado de olhar a hora e ia baixar o braço acabou vendo uma grande movimentação vinda de vários metros atrás de si, lá do lugar onde havia terminado de botar fogo, olhou para trás intrigado e só foi capaz de ver o fogo e várias árvores queimando, resmungou consigo mesmo que devia estar louco.

Voltou a caminhar em direção do norte onde se encontraria com o resto do pessoal até que ouviu o comunicador emitir um barulho de chamada, pegou-o e anunciou — Pode falar! — ouviu então um forte chiado que o fez deixar cair o comunicador no susto, cutucando o ouvido abaixou-se para pegar o comunicador e andando lentamente tentou de novo contato — Vocês querem me deixar surdo? O que está acontecendo aí ô cambada?

— CHEFE! O FOGO TÁ VIVO! — ele reconheceu então a voz do sujeito que tinha mandado ir se encontrar com o grupo norte.

— Do que estás falando? Não sabe mais fazer o seu próprio trabalho? — mas acabou não tendo mais respostas, só o que ouviu então foram gritos de agonia tão horríveis que pareciam vindos do próprio inferno, até que só conseguiu ouvir o som de crepitar do fogo e depois silêncio.

Tentou novamente entrar em contato com o comunicador daquela frequência, porém sem nenhuma resposta, continuou a se embrenhar na floresta escura e silenciosa, cujo único barulho era o do fogo consumindo a madeira, o suor agora escorria frio por seu rosto e estava começando a ficar nervoso. Não era um homem supersticioso, mas vários problemas poderiam acontecer durante um trabalho criminoso como aquele e não era a primeira vez que perdia homens para as chamas.

Olhou para trás, pensou ter ouvido alguma coisa, mas logo chegou à conclusão que era o incêndio se alastrando, precisava se apressar para não correr o perigo de ser queimado vivo também. Conforme avançava apressadamente por entre as árvores, desvencilhando-se do matagal alto usou o comunicador para entrar em contato com a equipe do norte que seria a responsável pelo final do trabalho.

— Ei, pessoal que ia cuidar da parte próxima do pantanal, como estão as coisas? — esperou por alguns instantes, mas estranhamente não houve nenhuma resposta, deu uns tapas no comunicador pois suspeitava dele talvez estar danificado, considerando que era um aparelho já meio velho — Tem alguém na escuta ai no norte?

Porém, não houve resposta alguma novamente e o jagunço começou a se perguntar se todo o seu grupo podia ter morrido carbonizado, mas desconsiderou a alternativa pois alguns deles já faziam esse serviço com ele há bastante tempo e estavam familiarizados com o trabalho, o comunicador que deveria estar com defeito.

Novamente ouviu um som estranho atrás de si e se virou, viu algum movimento rápido, mas não conseguiu distinguir bem o que era, talvez fosse uma anta ou potencialmente uma cobra... não seria estranho ver animais assim correndo pelo mato tentando fugir do fogo, mas ficou encucado ao ver que o fogo já havia se alastrado o suficiente para haver árvores queimando a alguns metros de onde estava.

Apressou o passo nervoso para se afastar do incêndio que chegava, precisava ir até a parte norte tentar se encontrar com o pessoal para então saírem logo daquela floresta, finalmente chegou então a região da floresta onde haviam combinado ser a parte que incendiariam por último para então seguir para fora pelo meio o que daria tempo para saírem em segurança.

Era uma grande clareira rodeada por grandes árvores e pelo que ele podia ver as árvores por ali ainda estavam intactas, perguntou-se o motivo do grupo não ter chego ali ainda uma vez que ele tendo que ir primeiro para oeste conseguiu já chegar por ali, um forte silêncio se fazia na clareira só cortado pela respiração rápida do jagunço que pegou o comunicador e tentou novamente contato com o pessoal responsável pelo norte.

— Alguém na escuta? — perguntou já com raiva por ter sido o primeiro e não ter nem sinal também do pessoal do leste. Ouviu então um barulho estranhamente familiar, era o apito de resposta que o comunicador emitia quando um de seus pares que utilizam a mesma frequência está chamando.

O homem andou até o centro da clareira que era de onde vinha o apito e o chão que estava macio pela terra úmida se tornou estranhamente pedregoso, ao se abaixar para encontrar o aparelho que apitava no chão acaba por ver ao lado do comunicador um crânio humano com restos de carne que parecia ter sido carbonizada ao ponto de ter torrado, ao se abaixar mais para olhar o chão ao redor viu que as supostas pedras eram na verdade diversos ossos nas mesmas condições do pessoal que devia ser a equipe responsável por aquela área.

Estava completamente estupefato com a cena que era-lhe apresentada — COMO ISSO OCORREU? NEM HÁ FOGO POR AQUI!!! — gritou o jagunço num misto de pânico e raiva e quase como se tivesse respondido ao seu chamado ele torna a ouvir o barulho que havia escutado até então.

Ao olhar para trás vê uma grande árvore em chamas, mas mais que o medo pelo fogo se alastrando até onde ele estava, uma pergunta o apavorava, como uma árvore tão grande havia surgido ali próximo do meio da clareira quando antes não havia nada ali? Não só isso, como também não fazia sentido que uma árvore grande como aquela estivesse pegando fogo em toda a sua extensão e não apresentasse nenhum dano em toda a madeira que logo parecia-se mais é com escamas.

A suposta árvore agora retorcia-se e o seu corpanzil assumia a postura de uma grande cobra e a cabeça emergia observando o humano, o corpo da cobra estava completamente em chamas e estas pareciam emergir a partir dos olhos que emitiam uma fúria implacável.

O jagunço nessa hora não conseguiu emitir sequer um grito antes de Boitatá soltar um sopro de fogo que carbonizou seu corpo inteiro em um instante, deixando para trás novamente apenas os ossos de um homem cujo nome jamais entraria para os livros de história, assim como outros tantos homens e mulheres que apenas agiam em favor de uma grande sombra, mas cujas existências sempre foram ignoradas.

Histórias PerdidasWhere stories live. Discover now