O bom livro acaba

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(baseado em "o amor acaba" de Paulo Mendes Campos)

O bom livro acaba. Em um suspiro, por exemplo, ou em derrota; acaba em sofrimento de terror, em alegria de morte; em vida, em palavras recheadas de sentido, ou palavras recheadas de palavras; acaba em liberdade eufórica de queda livre, em desprezo catarrento, em cobiça; acaba em um amanhecer; acaba em traição de amigos, em confissão de amantes, em ódio. O livro que li acabou em "angústia, sinto angústia" e, como que, sendo um bom livro, eu não teria me acabado também em angústia? O bom livro acaba em cima da cama, no sofá, no ônibus; acaba no meio do cigarro e no fim do copo de cerveja; acaba sem ar, ou com muita lágrima; acaba sentado, deitado, de pé; acaba na espera do pedido no restaurante, na última virada de página que as mãos ousam em fazer; acaba em qualquer mês de qualquer estação, porque o bom livro não se importa com o frio ou com o sol ou com a lua. Acaba e fica, porque o livro não vai embora, ele fica. A história acaba e mata-se o narrador. Mas o sentimento e a falta de ar ficam. E depois o livro deixa ansiedade, curiosidade; deixa as mãos tremendo e o fôlego esquecido em um banheiro sujo de paradouro de caminhões; deixa as lembranças de um romance infantil, de uma risada onde falta um dente, de um sonho, de uma vez que o avô contou uma história assim; deixa um término, sem direito a tentar voltar ou conversar outra vez. É o encerramento definitivo da relação tão parasitária quanto a de uma traça, visto que o bom livro é em palavras consumido enquanto em alma consome; deixa o cheiro de livro que não é mais novo e que agora já concluiu o trabalho da sua existência de livro. E o bom livro acaba em mais. Os olhos que acabam são vidrados, atentos, medrosos. Não querem que o livro acabe. Nunca querem que acabe. O final, por melhor que seja, é sempre a pior notícia do livro. Acaba em um piscar de olhos, em uma tarde ou em uma madrugada. Acaba em um mês. E se termina de folhear a última página e se fecha o livro, fazendo o ar sair e esvoaçar os cabelos. Talvez demore alguns segundos para que se perceba que aquele livro, aquela história, não é mais. Talvez demore dias. E depois que o bom livro acaba, seja em grito, seja em enterro, as palavras se desprendem do papel e afundam na carne e pulsam no sangue. E o leitor fecha o livro e sente as palavras irrigando os seus pulmões e o seu âmago. Valeu a pena as olheiras e a mediocridade das boas tardes. A curiosidade foi saciada e o coração é recompensado por bater sem parar e por pura teimosia.

O bom livro acabaOnde histórias criam vida. Descubra agora