UM ALEMÃO DESCENDO O LITORAL

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Descia contente a rua em direção à pensão que lhe haviam indicado onde, finalmente, poderia alugar um quarto para si depois de tanto desconforto ao longo de meses. Seu caminhar era confiante atirando um pé para nordeste e o seguinte para noroeste de acordo ao que uma de suas filhas, anos mais tarde, definiria como "caminhar dez para as duas' para indicar essa posição dos ponteiros de um relógio. O que sua filha não conseguiria imaginar era o efeito que esse caminhar, dentro das largas calças masculinas da época, causava nas mulheres porque a cada passada o tecido balançava como se fosse uma vela desfraldada e mesmo que as pernas, que dentro se escondiam, fossem finas, como era o caso, davam a impressão de volume e força. Ele era perfeitamente consciente desse efeito e orgulhoso estufava o peito que, este sim, era amplo e completava sua imagem de uma maneira que lhe dava satisfação.

Meses haviam se passado desde que aportara no Brasil sem conhecer, praticamente, nenhuma palavra de português, mas fizera algumas amizades durante a viagem do navio que partira da Alemanha, sua terra natal, e aprendera a dizer "bom dia" "boa tarde", "boa noite", "por favor", "obrigada e de nada" e, muito pouca coisa mais. O som era, completamente, estranho a seus ouvidos e por mais que se esforçasse em adivinhar o que se dizia pela expressão dos rostos pouco resultado obtinha porque a diferença para seu próprio idioma era muito grande. Passara a maior parte da viagem entre alemães que também emigravam e, como eles, a preocupação com o futuro era seu tema predileto; embora a preocupação dele devesse ser maior que a dos demais que viajavam com planos pré-estabelecidos, a maioria com aprovação e promessa de apoio do governo alemão quanto a local e ocupação que exerceriam, ele não tinha plano algum e sua preocupação era bem menor, pois tudo lhe parecia uma questão de aventura e coragem e com o acréscimo de ser jovem e de não ter encargos familiares a vida lhe parecia uma promessa que já se delineava na visão do mar que os cercava e de um céu imenso que variava de azul intenso a escuro e nebuloso e, só esta visão já era demasiado confortadora após uma infância pobre em meio a invernos rigorosos onde o cinza era predominante, na maior parte do tempo. As poucas vezes em que alguma espécie de angústia o assaltava era colocada de lado diante da novidade da beleza marítima que daí para frente sempre o comoveria, onde cada onda representaria uma lembrança, um desafio ou uma conquista.

Quando, por fim, chegaram ao Porto de Santos, este agitava-se em receber mais imigrantes, mais mercadorias e mais sonhos e medos, mais reencontros e desencontros e, embora houvesse organização para a acolhida, a confusão era predominante. Ele pouco se preocupava com a confusão e, menos ainda, com a organização que prometia abrigo e comida temporários porque a sensação de liberdade era tanta que hesitava em aceitar qualquer ajuda que o limitasse e comprometesse; tudo o que queria era um emprego e pretendia encontrá-lo por seus prórprios meios, pois temia que a ajuda a receber o catalogaria em alguma listagem que favorecesse a quem o buscasse, caso isso viesse a acontecer. A Divisão de Polícia Marítima, Aérea e de Fronteiras já não era mais tão rigorosa como a princípio da grande leva de imigrantes e pode dispensar a estadia na imensa Hospedaria dos Imigrantes que se encontrava na capital paulista; portanto, não encaminhou-se à antiga Estação de Trens da São Paulo Railway que conduzia aqueles que desembarcavam para um acolhimento onde se disponibilizavam dormitórios, alimentos e vacinas além de atendimento médico, se necessário, após triagem. Soube que as acomodações eram bastante precárias embora oferecessem um mínimo de saneamento básico como latrinas para homens e latrinas e lavanderias para mulheres, além de enfermaria e refeitório. Todos que lá se hospedavam ganhavam um cartão de rancho onde constava nome, nacionalidade e número de rações a que cada um tinha direito de acordo às respectivas idades e que lhes dava o direito de hospedagem por 6 dias antes de se aventurarem em uma nova vida em lavouras ou indústrias de acordo aos núcleos coloniais designados. Houve época em que lá se hospedaram mais de 1200 imigrantes e as epidemias eram constantes; todas essas notícias colhidas aqui e ali o fizeram desistir de vez de usá-la e começou imediatamente a perguntar por trabalho para qualquer um que não parecesse demasiado ocupado consigo mesmo ou família e não se incomodava se, por acaso, o interpelado não entendia nada do que estava falando porque aprendeu que a palavra trabalho todos conheciam. Assim foi perguntando para brasileiros e pessoas de diversas outras nacionalidades, sempre esperando encontrar algum alemão entre eles. A maioria dos brasileiros, assim que ouviam a palavra trabalho procurava indicar-lhe como chegar à Hospedaria dos Imigrantes, os demais ou não entendiam nada, ou eram alemães que a ela se dirigiam. Depois de várias tentativas e duas noites mal dormidas em algum pensionato, finalmente encontrou um alemão que lhe disse que estavam procurando alemães para trabalhar em Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul. Decidiu-se, então, encaminhar-se para lá depois que soube que para chegar ao Rio Grande do Sul era só descer o litoral até o ponto onde tivesse que adentrar-se ao continente para chegar à capital; sem dinheiro para qualquer meio de transporte começou sua longa caminhada assim que soube que a praia de Santos encontrava-se a poucos metros de onde se encontrava. Foi uma decisão não muito elaborada e seguiu a impulsividade do momento para enfrentar a distância de mais de 1000 quilômetros, mesmo porque não acreditava em distâncias tão grandes, pois do país de onde vinha longe significava uma distância de no máximo 3 dias de viagem.

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