A escuridão tratou de destruir mais um lar, desolado o gatinho preto havia desistido da felicidade e entregou-se a solidão, seus dias eram sempre no tom do seu olhar e sua vida sem sentido. Caminhando sem rumo e ao longe viu nos confins da cidade, um imenso lixão que exalava um forte odor que atraia urubus.
Um alto barulho aproximou-se, era o caminhão de lixo vindo despejar mais dejetos, várias pessoas apareceram e começaram a catar o que lhes interessava em meio ao lixo. A pobreza obrigava aquelas pessoas a viver dos restos descartados por quem tinha mais do que conseguia consumir.
Com o fim da movimentação no local, o gatinho aproximou-se e procurava algo para saciar sua fome, enquanto vasculhava o lixo encontrou restos de biscoito estragado, apesar do gosto horrível era o que tinha conseguido e sentia-se grato por isso. Antes que pudesse terminar de se alimentar ouviu um rosnar, com sua visão periférica viu o cão negro que começou a latir, com medo do confronto o gatinho arrepiou-se e miou baixo, ao pressentir o ataque o gatinho fugiu o mais rápido que pôde.
Trilhando entre montanhas de lixo era um ambiente difícil de correr, mas o medo mantinha o propósito do gatinho ativo, o cão negro parecia cada vez mais próximo, o cansaço atingiu o gatinho e coube-lhe a recorrer a seu último recurso, em desespero fincou suas garras em uma estaca que ficava de pé no centro do lixão, com esforço gato conseguiu escalar e chegar ao topo do pique e manteve-se protegido no alto enquanto o cão latia do chão.
Depois de alguns minutos algo inesperado aconteceu, uma garotinha apareceu e opôs-se frente ao cão, com os braços estendidos estabelecia o limite em que protegia o gato, perante a imposição da garota o cão desistiu e seguiu seu rumo. Depois de ter protegido o gatinho, a garota o pegou no colo e passou a mão em seus pelos, ao encarar o os olhos do animal ela sentiu um arrepio, o cinza intenso causou-lhe aflição.
Esquecendo-se de todo o resto a garota e o gato começaram a brincar, em meio ao cenário desolador do lixão um sorriso se destacava. A brincadeira durou por um bom tempo e logo veio à tardinha, com o alaranjado do sol no poente a garota partiu para sua casa e em seu colo um novo amigo.
As escondidas, a menina correu e adentrou em seu humilde barraco, tratou de esconder o gatinho embaixo da cama para que seus pais não o vissem, mirou o lumiar cinza no escuro e a curiosidade a atingiu:
— Como se chama gatinho?
— Miau! — A resposta veio com o miar.
— Já que você não sabe, vou te chamar apenas de gatinho.
Era hora de jantar, sua mãe serviu o que tinha e dividiu uma pequena porção de arroz para as duas, grata pelo alimento a menina comeu e deixou parte em seu prato, assim que sua mãe saiu da mesa ela correu e deu o que sobrou ao gatinho. Enquanto via o gato devorar todo o arroz que o ofereceu, a menina ouviu um grito soar da sala e correu para verificar do que se tratava.
Sua mãe aos prantos implorava para que o marido não a machucasse, em instantes a menina também começou a chorar, sua vida era triste além da pobreza extrema, falta de educação e alimentação básica a menina era submetida a terrores psicológicos e físicos como a violência doméstica, pois seu padrasto constantemente agredia sua mãe e por vezes a pobre criança.
Com tanto barulho em casa o gatinho curioso saiu do esconderijo e caminhou até a sala, assim que o felino adentrou o cômodo o padrasto da menina o viu e repleto de grosseria questionou:
— De quem é esse pulguento?
A menina que ainda não tinha notado a presença do gato assustou-se ao vê-lo ali, sem responder a pergunta apenas pegou o felino no colo e dirigiu-se para o seu quarto, pelo caminho sentiu a mão do seu padrasto segura-la pelo ombro, ao interromper o percurso o homem questionou novamente:
— Eu perguntei de quem é esse gato!
— Ele é meu! — A menina gritou.
— Não temos nem para nós e você ainda traz mais uma boca.
Demonstrando ódio no olhar o homem pressionou com força o ombro da menina que soltou um gemido e de seus olhos lagrimas começaram a cair, um forte empurrão e a menina caiu no chão. Fúria, nesse momento o gato enxergou tudo em volta num tom cinza e pressentiu que mais uma tragédia aconteceria, para impedir mais uma crueldade, o gato usou todas as suas forças e saltou o mais alto que pôde e fincou suas garras no rosto do homem.
O ataque do gato não foi o suficiente e só despertou ainda mais a ira do homem que lançou o gatinho com força na parede. Caminhando em direção a menina caída no chão o homem iria machuca-la e nesse momento o gato ficou com a visão ainda mais turva e um vulto chamo sua atenção, a mãe da menina partiu para cima do homem com uma faca em mãos, escapando do golpe inicial, marido e mulher entraram em um embate que findou com sangue.
Com a pupila dilatada a mulher caiu enquanto segurava o sangramento causado pelo golpe de faca em seu abdômen, com a imagem de sua mãe desfalecendo em sua frente a menina correu e a abraçou aos prantos clamava para que sua mãe não morresse. Aconchegada ao colo de sua mãe a menina sentiu os batimentos dela pararem e sua vida se esvair.
Com o sangue em suas mãos o homem ficou paralisado com a tragédia que havia cometido, não havia forças nem mesmo para fugir. Ao encarar o assassino de sua mãe a garota sentiu ódio e em seu peito um sentimento de vingança clamava por justiça, ao ver a faca do crime no chão a menina rapidamente pegou a arma e partiu em busca da sua vingança.
Recompondo-se, o gatinho viu aquela cena em câmera lenta e a escuridão parecia que iria tomar seus olhos novamente, sua angustia em reviver a solidão deixada pelas tragédias o consumia. O cinza de seus olhos não iria presenciar a dor nunca mais, com suas garras afiadas o gatinho perfurou seus olhos antes de ver o mal novamente, antecedendo a escuridão um vermelho vivido estampou sua última visão.
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Do cinza à escuridão
Short StoryAtravés de olhos cinza o mundo é visto de forma diferente, as cores somem e a sensação de que algo ruim vai acontece está presente a todo instante. Carregando tragédias sob as patas, um gato preto viu diversas atrocidades acontecerem, seus olhos não...