Os Procedimentos

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Estava no terceiro andar, um lugar apertado, dois por dois metros aproximadamente, e a opressão do ambiente aumentava a sensação de claustrofobia com a expectativa do que estava por vir.
Nuvens negras encobriam a lua e o grito insistente dos corvos agitavam os animais, anunciando o mau presságio. Checou a tranca da porta que levava ao piso inferior. Agora era só esperar.

A construção de três andares era estreita e muito antiga, se comparada às demais propriedades. O primeiro andar era composto de salão, lavabo e uma cozinha ao fundo. Uma escada em curva subia da parte esquerda da entrada conduzindo uniformemente aos andares superiores, ambos compostos de três quartos, um banheiro e uma saleta. Entretanto, havia o sótão com uma claraboia, cujo acesso se dava por uma minúscula escada paralela à saleta do terceiro pavimento. Era um observatório do tempo que também servia para avistar possíveis invasores, fossem de quais tipos fossem. Ninguém ia lá, exceto o dono da propriedade, um homem de estilo simples, de poucas palavras e semblante endurecido pela labuta diária e por alguma coisa que escurecia seu olhar.
Tinha duas filhas moças, formadas e recém-casadas, mas há muito tempo nem a esposa ou as filhas moravam mais com ele. Ninguém morava lá, a não ser ele, dois ajudantes e uma empregada, sendo que os três últimos iam para suas casas ao final do dia e folgavam nos fins de semana.
Gostava das coisas certas. Nada podia fugir ao seu controle, e por isso, não queria companhia quando os invasores viessem à noite dessa vez, como faziam sempre em época de colheita por mais de dois séculos, o máximo que seu avô podia lembrar.

Tão logo tinha alcançado algum entendimento sobre os cuidados com a propriedade, seu avô, um homem sábio e taciturno, lhe passou os procedimentos. Só os homens poderiam sabê-lo. Seu pai não tivera tanta sorte. Tinha puxado a personalidade impetuosa da mãe e não atentou para os procedimentos. Naquela fazenda, vida, morte, prosperidade ou falência, resumiam-se a isso, a vigilância dos procedimentos.
Segundo seu avô, o filho não lhe dera ouvidos e, quando já era pai de família e encarregado da vigília, resolveu beber para controlar a ansiedade e acabou dormindo. Foi encontrado morto, e sem os olhos. A polícia concluiu que ele foi atacado por corvos, mas o pai sabia que não. A nora, não suportando a dor da perda, deixou o filho aos cuidados do avô e nunca mais foi vista.
A colheita seguinte não aconteceu, nem no trimestre posterior. Na época ainda era uma criança, muito observadora, e sabia que algo não havia dado certo por culpa de seu pai, o último zelador. 

Passaram um ano de grande aperto e tiveram que vender alguns animais até restabelecerem a ordem dos visitantes e observar os procedimentos com maior rigor.
Sentia falta de sua mãe, ou do pouco que recordava dela. Ainda podia ouvir os risos, a música, a festa regada a bebida caseira e tudo que o milho podia oferecer em forma de iguaria nas sempre fartas épocas de colheita. Esses dias estavam distantes, enevoados numa memória obscurecida pelo tempo. Já estava velho e seu avô há muito tinha partido, numa morte calma e em avançada idade. A vida tinha sido boa com ele – dizia -, tudo porque tinha observado os procedimentos.
"O milho é generoso, desde que se guarde com prudência o tempo certo até a colheita; 90 dias no verão e de 100 dias no inverno" - dizia o ancião - Nunca falhou, porque eles nunca falharam, nem seu avô e nem ele, ou quase.
Logo depois da morte do velho, a casa tinha ficado triste e uma celebração deveria ser dada em sua honra.
Tinha completado trinta anos e seria um bom momento para achar uma esposa entre as filhas dos fazendeiros locais; foi quando a conheceu. Casaram-se exatos três meses depois da festa do luto, coincidentemente no tempo da colheita. Tinha cumprido os ritos, sido zeloso com o plantio e no cuidado com os campos, mas foi após a festa de casamento, justo depois da tarde de bebedeira, que eles apareceram.

Os casamentos eram tradicionalmente celebrados durante o dia, seguidos de um grande almoço e despedidas ao cair da tarde. Não imaginava que eles viriam naquele dia, aliás, ele nunca os tinha visto. O zelador tinha que estar só ao abrir a claraboia o que até então, tinha sido seu avô e ele, por sua vez, estava nos braços de sua linda esposa.
Estavam a sós, como todos recém-casados devem estar. Tomou o cuidado de fechar as janelas por causa dos mosquitos e as portas da frente e dos fundos para não serem incomodados. Pronto, tudo perfeito.

Os ProcedimentosWhere stories live. Discover now