GUILHERME SATOREOS
Guilherme esteve perigosamente perto demais da morte, de forma que pôde senti-la abraçando-o lentamente feito os tentáculos de um Kraken assassino das lendas. Agarrou-se à vida no último instante, antes que fosse tarde, embora quase nenhuma força lhe restasse e quase não mais fosse possível ouvir os gritos histéricos de Susana. Naquilo, havia bem mais sons e a Guilherme ainda restava dúvidas sobre quando exatamente entrara naquele estado de inércia e fraqueza inebriantes.
A apunhalada desferida por Leonardo doera, embora fosse insuficiente para lhe matar. Guilherme era ainda capaz de mover-se, quem sabe até pedir por socorro, mas assim que viu um par de olhos cruéis atravessando a escuridão e fitando-o silenciosamente, descobriu que teria de permanecer caído. Eram olhos sombrios desejosos em cometer atrocidades. Temeu por Susana e desejou fervorosamente avisá-la, no entanto, descobriu logo em seguida que Leonardo fora atingido com uma flechada vinda diretamente da densa escuridão formada pelas árvores.
Guilherme experimentou alívio e terror, quais não tivera qualquer desejo em sentir. Livrar-se do estorvo que Leonardo tornara-se não lhe garantiria Susana incólume. Ainda assim permaneceu inamovível, os olhos fechados e mantidos apertados como a um férreo cadeado forte. Assim permaneceu até que fosse tarde demais e muito de seu próprio sangue se esvaísse. Vieram então os calafrios, seguidamente os tremores, os suores frios, uma desidratação que não conhecera em toda sua vida.
Ainda agora era possível sentir os efeitos amargos da perda de sangue, mesmo que minimamente. Estava deitado e sob observação da senhora sua mãe, que o visitava de tempos em tempos para administrar os chás e trocar os curativos. O braço ruim ainda não dispunha toda a força que gostaria e a pele mantinha o aspecto pálido e ressequido. Não estava suficientemente bem para conseguir mover-se com plenas capacidades, porém já era capaz de levantar-se para mijar quando a vontade apertava-o ao ponto de causar-lhe dor.
— Sua recuperação me surpreende, querido! — a mãe disse ao entrar nos aposentos de Guilherme. Estava longe de ser um aposento que desse orgulho. Era, tal como todo o restante do humilde casebre em que moravam ele e mãe no cortiço: escuro e úmido; a cama, um apanhado de madeira seca reforçada com cipós e com um amontoado de palhas e restos de forros como colchão. A escassa iluminação provinha de uma vela grande e retorcida que bruxuleava em cima da velha escrivaninha. Senhora Satoreos não dispunha recursos para pagar por energia elétrica, mas ainda que dispusesse, esta comodidade ainda não chegara aos cortiços de Vila do Arqueiro. — Mal fui capaz de acreditar que você estivesse vivo ontem. — Ela deu um sorriso triste. — Minhas lágrimas nunca antes tiveram tão boa utilidade.
Guilherme sabia que com pouca, muita ou nenhuma utilidade, as lágrimas eram parte concomitante da vida de Isadora Satoreos. Isto dava aos olhos azuis dela um aspecto avermelhado e inchado, com olheiras evidenciando as muitas noites em que o sono não viera. Muito ouvira sobre como Isadora fora bonita em sua juventude. O pai segredava isto nas poucas vezes que se dispusera ser gentil para com Guilherme, então com não mais que oito anos. Os longos e suaves cabelos claros de um dia estavam agora bastante mais curtos e quebradiços feito palha. A esbelta postura de Isadora transformada em uma imagem de evidente cansaço.
— Felizmente estou vivo e isto é o que mais importa — mentiu para agrada-la. Perdera Susana novamente e qualquer oportunidade que jamais teria em fugir na companhia dela.
Guilherme abraçou a mãe com dificuldade. Fechar o braço direito era terrivelmente doloroso. Tinha também de se atentar aos curativos para não rasgar os pontos recém-costurados. Isto significaria arcar com mais custos que não teriam a possibilidade de pagar. Guilherme juntara todas as economias que conseguira por seis meses com alguns trabalhos limpando chaminés e alguns outros serviços para os abastados da cidade, para que assim conseguisse pagar as passagens para Asas Verdes, mas perdera tudo isto na noite anterior. Perdeu também as poucas roupas e sapatos decentes que tinha e que usava para ir à escola dos saberes, todos enviados pelo pai que morava em Asas Verdes. A parte que voltaria a morar com o pai em Asas Verdes ele não contara à mãe, pois isto a desagradaria terrivelmente. Desagradaria ao próprio Guilherme também, mas infelizmente era a única maneira encontrada para conseguir fugir com Susana antes que o casamento com Leonardo fosse consumado.
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O Cavaleiro da Maldição
FantasyMuitos são os que conhecem o mito dos continentes perdidos: Atlântida e Lemúria. O universo criado pelo autor remonta ao período onde Atlântida e Lemúria gozavam seu auge, com fortes inspirações na Mitologia Grega e medieval, além de salpicos vultos...