Terapia - Sessão 1

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Estava aguardando na sala de espera. Inquieto, encarando a parede. O silêncio na sala estava me irritando, ouvindo apenas o som baixo da secretária digitando em seu teclado e a outra paciente em minha frente folheando uma revista. Quando finalmente a porta do consultório se abre e a Doutora Lilian aparece se despedindo do paciente que estava atendendo.
- Jake? - Anunciou parada na porta.
Me levantei sem dizer nada e entre na sala, logo ela fechou a porta.
- Pode se deitar no divã ou sentar na poltrona, o que sentir mais confortável.
Me sentei no divã, estava quente, provavelmente o outro paciente estava deitado aqui. A sala estava em uma temperatura amena, muito melhor do que o frio cortante que fazia lá fora.
- Então Jake, segundo o seu prontuário, você procurou atendimento psicológico comigo por conta de traumas passados, correto?
- Sim, isso mesmo.
- Me diga sobre esse trauma.
- É... Bem... Eu não sei como começar...
- Ninguém sabe como começar, tente me contar sua memória mais antiga.
- Me desculpe, eu ensaiei muitas vezes, mas mesmo assim é um pouco difícil...
- Temos muito tempo, Jake, vamos começar devagar, vejo em seus olhos que esse trauma te custou muito.
- Minha vida nunca foi algo legal, algo que eu me orgulhasse, sempre passei momentos difíceis por causa do meu pai...
- O que seu pai fazia com você?
- Ele bebia muito, sempre que coloca uma gota de álcool na boca, ele abusava e acabava descontando em mim, na minha mãe, eu sempre tentava proteger elas, mas eu e minha mãe acabávamos pagando por tudo.
- Elas?
- Isso, eu tenho duas irmãs e um irmão também... Bem, tinha... Eu sempre tentava proteger elas como qualquer irmão mais velho faria, eu conseguia, mas minha mãe também acabava pagando. Até hoje eu me culpo por isso, meu pai chegava em casa bêbado e o que visse em sua frente servia como saco de pancada. Eu ficava acordado nessas noites, e quando o ouvia chegando, rapidamente escondia minhas irmãs e meu irmão no armário e ficava para "enfrenta-lo", mas aí minha mãe surgia para me proteger, eu estava ali para receber toda a fúria dele, mas minha mãe insistia em ficar na minha frente.
- Uma mãe não se importa em condenar sua integridade física ou psicológica para proteger seus filhos, Jake, elas fazem o que for preciso para se proteger.
- Um filho também não se importa em arcar com as consequências de um pai alcoólatra, se for pelo bem da família!
- E como é a sua relação com o seu pai atualmente?
- É... - Nesse momento me segurei para não chorar, como se todas aquelas emoções voltassem novamente - Essa parte é um pouco complicada...
- Se não quiser falar sobre isso, tudo bem.
- Não, não é isso... Eu quero, é por isso que eu vim aqui, mas essa parte é delicada...
- No seu tempo Jake, não precisa se pressionar.
- Meu pai e minha mãe estão mortos - Uma aflição tomou meu coração, como um aperto, uma queimação em meu peito.
- E como isso ocorreu?
- Eu tinha 16 anos na época, meu pai estava sóbrio há um bom tempo, minha mãe deu uma nova chance a ele, mas eu nunca havia confiado nele. Estávamos morando todos juntos, meu pai, minha mãe, eu e meus irmãos. Nessa noite meu pai e minha mãe iriam em uma festa do trabalho dele, eu e minhas irmãos ficamos na casa da nossa avó. Era por volta da meia noite, eu esqueci alguma coisa em casa, não me lembro o que era. Quando estava chegando em casa, vi as luzes acesas, o que achei muito estranho, meus pais avisaram que iam chegar tarde dessa festa. Foi quando entrei e me deparei com a cena...
- O que aconteceu? O que você encontrou?
- Minha mãe... Estava deitada no chão, seu rosto desfigurado, o chão estava banhado em sangue, e na varanda estava meu pai, enforcado....
Fiz uma pequena pausa, ainda tentando conter o choro, mas as lágrimas inevitavelmente rolaram pelo meu rosto.
- Eu não sei porque ele fez isso, segundo a polícia... Eles tiveram uma briga por ciúmes na festa, meu pai bebeu demais... Merda, eu tinha dado uma chance pra ele... E ele joga fora essa porra, junto com a vida da minha mãe... Caralho!
Apenas o meu choro de desespero ecoou pela sala, a Doutora me observava aflita.
- Este é seu momento, Jake, fale o que precise falar.
- Sabe o que é pior? Eu fiquei ali, observando o corpo morto da minha mãe, com esperança que ela estivesse viva, achando que aquilo não passava de um sonho, eu me batia, me beliscava, na tentativa de tudo voltar ao normal, de não ver mais aquela cena... Mas foi esse rumo que as coisas tomaram... E foi tudo culpa minha.
- Como você acha que tudo isso foi culpa sua?
- Quando ele voltou sóbrio, tentando se redimir, eu fui o que mais persistiu em não aceitar ele de volta. Eu só aceitei porque minha mãe me implorou, eu não queria! E olha a merda que aconteceu. As vezes eu fecho os olhos e vejo aquela cena, eu não quero mais ver aquilo, eu quero esquecer tudo!
- E como foi sua vida depois disso?
- Minha irmã, Anna, minha irmã gêmea, acabou se enforcando do mesmo jeito e no mesmo lugar que meu pai. Eu nunca entendi, havíamos vendido a casa, estávamos a quilômetros de distância daquela merda de casa, e ela volta para lá, para acabar como aquele verme, enforcado.... - Neste momento uma figura se formou ao lado da Doutora, com um vestido branco reluzente, a pulseira familiar me fez lembrar de quem era, era o espírito de Anna, voltando como sempre, para me atormentar, ou para confortar meu coração - As vezes eu a vejo.
- Quem? Anna?
- Sim, é um misto de sensações quando a vejo, não sei se fico feliz em ver o seu rosto novamente, ou com raiva ao lembrar do que ela fez, ou triste no que ela se tornou.
- No que ela se tornou?
- Você não a vê, não é?
A Doutora olhou ao redor, com um certo terror estampado em seu rosto.
- Tudo bem, Doutora, só eu a vejo, mas saiba que ela está ao seu lado nesse exato momento.
- Já que ela está aqui... Porque não diz algo pra ela?
- Eu já tentei, falei inúmeras coisas, mas ela sempre fica parada, estática, ela não diz nada, não faz nada, me olha com a mesma expressão em seu rosto, essa expressão vazia, e seu olhar... não consigo identificar nada do que ela está sentindo, do que ela quer mostrar para mim aparecendo desse jeito.
- E o que você diria a ela antes dela se matar? Como se fosse a última vez que a visse viva, o que diria?
- O que... Eu diria?
- Sim, muitas vezes não temos a chance de nos despedir das pessoas que amamos, porque não podemos prever o que acontecerá em seguida. O que você diria a sua irmã sabendo que séria a última vez que ela estaria com você?
- Hum, nunca parei pra pensar nisso. Anna... Se lembra quando éramos pequenos, estudávamos na mesma sala no jardim de infância? Aqueles valentões sempre mexiam com a gente, eu queria te proteger, mas era você que desempenhava esse papel. Nos dias de chuvas fortes você ia até minha cama com medo dos trovões e pedia para dormir comigo, eu sempre sabia quando você estava com medo, e você sempre sabia quando eu estava com raiva... Eu só queria saber o que estava acontecendo com você naquele momento, eu só queria estar ao seu lado, como aqueles filmes ridículos que você gostava, eu aparecendo no momento decisivo e salvado você... Você faz tanta falta, Anna, eu não consigo dormir, eu sonho todos os dias com você. Eu só queria, você ao meu lado agora...
- Jake...
- Eu só queria ter sido útil pra você no momento que você mais precisava...
Um momento de silêncio tomou a sala, toda a angústia havia ido embora, como se eu fosse "curado" apenas pela fala. A figura de Anna aos poucos desapareceu, até transparecer as paredes brancas do cômodo.
- Eu sinto muito a falta dela, da minha mãe, eu não sei o que fazer, eu não tenho um norte, estou completamente perdido.
- É comum nos sentirmos perdidos após a perda de um ente querido.
- Eu sei, Doutora, mas já faz um tempo que ela se foi, eu não consigo esquecer isso.
- Sua irmã não deixou nada para trás? Não te mandou uma mensagem antes dela se matar, ou qualquer coisa do tipo?
- Não, a gente havia brigado por alguma coisa, ficamos dias sem nós falar, e quando decidi me redimir, recebo a notícia da morte dela.
- O que houve com a casa?
- Ela estava fechada para reforma para o atual dono vender, só que com 3 mortes naquele lugar, a casa ficou com fama de assombrada e o dono nunca conseguiu vender, então ela está abandonada desde então, sem nenhum comprador pendente.
- Você foi criado nela?
- Sim.
- A casa tem um valor sentimental para você?
- Se não fosse pelos acontecimentos, desde a morte dos meus pais eu nunca mais quis pisar nela.
- Nosso tempo acabou Jake, queria conversar mais com você sobre sua família, podemos encerrar por aqui?
- Sim, ok, só de contar isso pra você já tirou um grande peso de mim.
- Semana que vem, no mesmo horário?
- Sim, estarei aqui...
Me despedi da Doutora e sai do consultório. Coloquei os fones e sai rua a fora. Me desliguei completamente do mundo, não ouvia as buzinas dos carros, oxi xingamentos no trânsito. Nada. Sentei no ponto de ônibus esperando o próximo passar. Sentia o vento frio rasgando com seu toque em meu rosto. Meus dedos estavam duros e decidi esquentá-las no bolso do casaco. E ali fiquei, perdido em pensamentos.

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⏰ Última atualização: Jul 13, 2020 ⏰

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