Não tinha me dado conta de que as horas se passaram tão rápido.
Comecei a escrever lá pelas cinco da tarde, e agora são sete da noite. Minha xícara de chá está vazia. Olho para a tela e vejo o que escrevi.
Quando meus pais morreram, eu estava na Bahia, estava curtindo, sem preocupações nenhuma. Estava com meu namorado, Bernardo, que segurou minha mão no meio de uma festa de um dos seus amigos, o tema era de um time de futebol que eu nem sabia o nome. Mas quem liga? Ele havia me pedido em casamento. Eu chorei. Mas aceitei, e quando o fiz, lembrei-me de como havíamos nos conhecido: Ele morava em outro estado, eu também, nos conhecemos por aplicativo e começamos a trocar conversas e declarações. Ele se mostrava perfeito e tive o prazer de saber que eu estava certa. Enfim, voltamos para onde eu moro, estava contando com a ideia de que meus pais o aceitassem, de que nos deixassem morar com eles por agora e depois nos mudaríamos para nossa própria casa e com nossos filhos, que eu queria que fossem gêmeos. Mas nada disso aconteceu. Meus pais e meus irmãos morreram em um acidente de carro, fazia sol, mas meu pai perdeu o controle do carro de repente e a batida foi feia. Feia na verdade é otimismo meu; a batida foi terrível. Acabamos, eu e Bernardo. Decidi acabar com ele, porque simplesmente não dava mais certo, eu estava de luto e não tinha esperanças de voltar a ser eu mesma, a que ele conheceu. Ele foi embora e eu fiquei com a casa dos meus pais para mim, estou em um emprego ótimo e acabei de conhecer um homem ótimo também. Mas espero ir devagar desta vez, tenho medo de que algo possa acontecer de novo, não acho que suportaria sabem? Nunca vou me esquecer daquela festa, talvez, mas queria esquecer completamente tudo daqueles dias. Sinto falta deles.
Sorri.
Era tudo mentira.
Bem, quase todas as palavras era eu realmente perdi meus pais e realmente fiquei com a casa deles. Mas nunca existiu um Bernardo ou um emprego maravilhoso, nem mesmo uma viajem para Bahia. Mas isso não me impediu de publicar esse texto no blog.
Penso em outras coisas para escrever, mas nada me vem. Já escrevi sobre tudo! Já escrevi sobre o assalto no mês passado, escrevi de como fui perseguida por dois caras até que joguei uma pedra em um deles na semana retrasada e escrevi de como quase fui morta depois de sofrer um acidente de moto quando estava na Europa. Ambas as coisas, mentiras. Mas quem pode me jugar se a vida real é uma droga?
Paro de escrever.
Penso se devo preparar minha janta, mas meus dedos doem tanto que duvido que consiga pegar em uma panela. Comer no Mcdonalds me parece uma péssima ideia, a não ser que eu queira acordar com dor de barriga no meio da noite.
Saio de casa.
Meu passatempo favorito é observar as pessoas.
Mas não de um jeito simples.
Eu as observo e tento me encaixar em suas situações; há um homem tentando fazer a filha parar de chorar —Automaticamente me imagino com uma filha. —Na mesa atrás de mim, pelo que pude ouvir, há uma mulher conversando no telefone sobre seu ex-marido e sobre como ela achou roupas intimas de outra nas coisas dele —Isso me faz pensar em uma traição digna de novela. É isso que faço. É isso que me dá disposição de criar o que crio e publico. É ótimo se você não perceber o quão solitário é.
Minhas mãos estão gordurosas e percebo que minha blusa está melada de mostarda. Minha mãe reprovaria minha postura nesse momento, nem me deixaria sair de casa usando apenas uma blusa fina e um moletom. Nem mesmo com os cabelos desarrumados, mas parei de me importar com minha aparência há um tempo.
Uma mulher loira vai até o caixa com uma garotinha também loira e uma senhora de cabelos castanhos, elas são animadas e falam alto, riem alto. Meus olhos observam tudo com afinco, essa mulher, era ela quem eu queria ser as vezes, quando me olho no espelho quando estou escovando os dentes ou quando estou fazendo café pela tarde e me vejo no reflexo da janela da minha cozinha. Ela é linda. A garotinha irá crescer e será igual a ela. À noite, quando o lençol parece querer me sufocar ou quando o quarto parece-me claustrofóbico eu penso como seria me mudar em qualquer dia e me tornar outra pessoa. Diferente da Amanda que sou hoje; a problemática solitária que perdeu os pais e que não sabe fazer mais nada além de escrever mentiras em um blog onde só as pessoas desocupadas vivem. Queria ser a Amanda que teria coragem de escrever um livro, a Amanda que teria coragem para se comunicar com qualquer pessoa em qualquer lugar. Desejo tão imensamente que quase faço isso, mas sempre há algo, uma garra de tristeza e insegurança que me puxa para trás e ao invés de conseguir dar um passo para frente, eu dou dois para trás.
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Eu, Hanna
General FictionVer uma pessoa morrer não é nada de tão incomum. Mas se a pessoa que você visse morrer for idêntica a você? E se ela lhe pedisse um último favor? E se você aceitasse? A vida de Amanda Voz, uma escritora amadora, agora se resume no "e se". Decidida...