Um conto moderno de Chapeuzinho Vermelho

94 2 0
                                    

Durante os últimos meses uma bela e educada jovem seguia com a sua lambreta vermelha para fora da cidade. Ela passava na farmácia e num mercadinho, onde se munia de suprimentos e continuava o trajeto por várias horas pela rodovia através da floresta até a casa de sua idosa avó. A octogenária vivia isolada numa casinha cercada de carvalhos e era adversa a tecnologias, portando sua choupana não possuía eletricidade nem telefone, quiçá televisão. Quando interrogada do por quê de se viver tão solitária e sem comunicação alguma, a mesma respondia prontamente: — Não trabalhei feito uma condenada para passar o resto dos meus dias respirando poluição e ouvindo sirenes o tempo todo. A mesma era doente e não podia fazer muitas atividades cotidianas sozinha, por isso, precisava que alguém cuidasse dela regularmente; preparando refeições, ajeitando a casa ou confirmando se ela tomara os remédios corretamente. Contudo, a vovozinha não aceitava estranhos em sua casa e, portanto, restava a tarefa para a sua linda neta. Toda a semana a netinha realizava a mesma rotina: terminava o seu expediente no trabalho, comprava o que era necessário e seguia pela rodovia sempre em sua lambreta vermelha. Ela usava também um capacete de igual cor, vestia uma jaqueta de couro e calça jeans com botas de cano alto. Como a viagem era longa e cansativa, a jovem precisava pernoitar na casa da avó, aonde tratava da velhinha e da casa, voltando apenas no dia seguinte para começar uma nova semana. Ela não tinha mais os finais de semana livre; cinema? Nem se lembrava qual fora a última vez que fora ver um filme; amigos? Talvez tivesse alguns colegas de trabalho e olhe lá, sempre que alguém tentava se aproximar, ela se afastava — 'talvez fosse melhor assim', pensava ela. A neta gostava da vida que tinha: do som do vento na estrada, do pôr do sol ao longo da rodovia, do som das corujas que ela sabia que a observava enquanto cruzava a floresta. Alguns diriam que era um percurso perigoso para uma garota fazer sozinha. Que esses 'alguns' não deixassem que ela os ouvisse chamando-a de 'garota', alguém sairia com um olho roxo, certamente. Quando pilotava a sua lambreta o mundo se tornava seu e parecia passar em borrões. Ela acreditava poder vê-lo passar em câmera lenta, dona de si e que era imbatível. Todavia, neste entardecer as coisas foram um pouco diferentes, pois a lambreta falhou e ela se viu parada na estrada, no meio do nada, sem uma viva alma. Lembrou-se que alguns quilômetros à frente haveria um bar de motociclistas. E lá foi ela empurrando sua lambreta por duas horas até chegar exausta ao bar. Dezenas de motocicletas de diversos tipos estavam estacionadas na frente do mesmo, bem como uma carreta longa, duas caminhonetes e um furgão velho. Quando a jovem entrou no bar atraiu todos os olhares para si, não que fosse a única do mulher no ambiente, havia outras, de mesma idade ou mais velhas, ela não sabia dizer com exatidão, só que nenhuma tinha a beleza e simpatia que ela esbanjava. — Obviamente a maioria eram homens motociclistas, barbudos, mal-encarados e, alguns deles, necessitavam urgentemente de banho. Ela chegou ao balcão e foi rapidamente recebida pelo atendente de meia-idade, levemente calvo, de barba por fazer e de barriga protuberante. — Uma bebida? Não sei se já tem idade para isto... — falou ele. — Ah, água, por favor. — falou ela sorrindo cansada. — Minha lambreta pifou no caminho... — ele serve o copo d'água, que ela esvazia numa única golada longa. — Obrigada. Há algum mecânico ou alguém que possa dar uma olhadinha? Ele torna a encher o copo e ela sorve mais vagarosamente, apreciando desta vez. — Olha, menina... — começou ele e parou justamente quando ela o fez se arrepender de chamá-la de menina. Se guiava uma lambreta, provavelmente não era assim tão nova. — Certo, desculpa. Fale com aquele cara de xadrez cheirando a graxa ali no fundo. — Muito obrigada. — agradecida por haver uma solução, foi até onde ele indicou. Ela atravessou o bar até o homem de camisa xadrez e que, realmente, cheirava a graxa, quando estava prestes a deixar de se incomodar com os olhares sobre si, um deles lhe chamou a atenção bem lá no fundo: vestia jaqueta de couro, tal como ela, bandana na cabeça, a barba cerrada, olhos cinzentos e expressão indecente. A jovem logo tratou de voltar-se para o homem cheirando a graxa para sair logo dali. — Bom dia, boa tarde, boa noite... — falou o homem de xadrez assim que terminou de virar o caneco com o restante da cerveja que bebia. Havia na frente dele um prato vazio, recém terminado. Os cabelos dele eram volumosos em cachos macios, os olhos castanhos e tinha um queixo quadrado onde uma barbinha rala teimava em crescer. — Para onde vai, mocinha? — Atualmente a lugar nenhum... — respondeu com um muxoxo. — Minha lambreta deu problema a alguns quilômetros, empurrei-a até aqui para buscar ajuda. — Já anoiteceu e é perigoso na floresta. — explicou ele limpando a boca com um guardanapo. — Por quê a pressa? O velho tem quartos nos fundos que aluga para o pernoite... — Não posso. — a jovem o cortou sem ser rude. — Tenho que chegar até a minha avó. — Ah, compreendo. — assentiu ele. — Vamos dar uma olhada na vespa? Os dois saem do bar, já era noite e as luzes dos postes iluminavam a frente da loja. No céu, a lua estava levemente encoberta por nuvens. Ele avalia a lambreta por alguns instantes e faz um sinal pedindo um minuto, vai até uma das caminhonetes ali estacionada e volta com uma caixa de ferramentas. — Que bom que a sua avó tem você para ajudá-la. — disse ele descontraidamente tentando puxar assunto. Ela respondeu com um 'aham' sem graça, apenas sorrindo. — Pronto, não era nada demais. — disse ele alguns minutos após começar a mexer na lambreta. O som do motor funcionando novamente era um alívio para ela. — Puxa! Muito obrigada, de coração. Nem sei como agradecer. — ela disse. — Quanto lhe devo? — Que isso, seria um crime cobrar por isto. — respondeu ele. — Cuide de sua avó, só acho que deveria esperar o dia raiar. Já é noite alta... — ele começou um monólogo repreendendo-a do perigo, mas logo parou ao ver que ela não mudaria de opinião. — Certo, certo... Apenas tome cuidado. — Tomarei, muito obrigada mais uma vez. — disse ela pondo o capacete e acelerando a lambreta logo em seguida. Enquanto o rapaz limpava as mãos com um pano sujo para voltar para o bar, ouviu o som de uma possante moto dando partida, não chegou a ver quem se fora. No céu as nuvens começavam a se dissipar revelando a lua brilhando intensamente. 'A vovozinha deveria estar preocupada, a neta estava atrasada algumas horas além do normal que ela costumava chegar', pensava a jovem. Ela acelerou o máximo que julgava ser seguro e adentrou o trecho da floresta. Não demorou muito para ouvir e em seguida ver a luz do farol de uma motocicleta em seu retrovisor. Não demorou para que se emparelhassem. Ela viu que era uma moto grande de guidão alto e assento confortável, para longas viagens. E o condutor era aquele estranho homem de jaqueta preta e bandana que tanto lhe encarara dentro do bar. Ele buzinou uma vez. Ela apenas olhou e manteve o seu trajeto. Ele buzinou uma segunda vez. Não parecia estar pedindo ajuda, estava tão rápido quanto ela e não tentara falar nada. Mantinha apenas um sorriso cínico no rosto. Ele buzinou uma terceira vez. Desta vez, subitamente, fechando-a. Por pouco ela não perdeu o controle da direção e saiu da estrada. A jovem neta reduziu, freou e encostou. Ele encosta logo em seguida, mais a frente. Eles descem de seus veículos e caminham um na direção do outro. — Você está maluco? — perguntou ela. — Poderia ter causado um acidente. — ela pára a poucos passos dele. — Estou maluco sim, desde de que você entrou naquele bar. — de novo o sorriso cínico. Ela recuou e tentou correr, mas ele rapidamente a alcançou e a agarrou pelo braço — só não esperava que ela soubesse krav maga. — A jovem torceu sua mão, girou e deu uma joelhada em sua genitália. Enquanto ele se contorcia de dor, ela correu para a lambreta, deu partida e acelerou para cima dele, que teve que pular para fora da estrada para escapar. No meio do caminho, ela chutou a moto dele que tombou, quebrando o retrovisor. — Sua vagabunda! — gritou ele se levantando. — Você vai ver, vou te alcançar. Era verdade, a motocicleta dele era muito mais veloz que a lambreta dela, jamais escaparia naquela única estrada através da floresta. A jovem então sacou um canivete do bolso de sua jaqueta e, olhando para ele com seu sorriso ainda mais cínico que o dele, perfurou os dois pneus do veículo com ele implorando que ela não fizesse àquilo. Ele ainda tentou correr e alcançá-la, porém a dor ainda era grande. Ela logo estava disparando estrada afora. Quando ele finalmente alcançou a moto viu o estrago que ela fizera: perfurara os pneus em pelo menos três lugares cada. Enquanto xingava-a mentalmente, tratou de levantar o veículo — o retrovisor esquerdo estava totalmente destruído. — Ele teria que voltar ao bar empurrando-a, tal como ela dissera que havia feito no início daquela noite. — Maldita seja... — enquanto resmungava no caminho de volta, pensou ter ouvido algo. Olhou para os dois sentidos da estrada e não avistou nada. Ouvia o som de corujas, grilos e outros seres noturnos. Entretanto sabia que tinha ouvido passos, como quando alguém tenta se mover silenciosamente e não consegue. De repente ouviu passadas pesadas rápidas se aproximando e... Não viu o que o atingiu, apenas sentiu uma ardência se espalhando do seus ombros até a virilha. Ao se dar conta, viu as suas vísceras escorrendo para fora da barriga, enquanto tentava inutilmente contê-las, tombou ao chão e tudo se escureceu... ele apenas viu um vulto escuro se aproximando e então o frio da morte lhe alcançou. Tendo passado a floresta, a neta finalmente pegara a estrada de terra que levava para a casa da avó. De longe ela logo estranhou, pois tudo estava escuro demais. Por mais que não houvesse eletricidade na casa, a avó sempre deixava um lampião do lado de fora, além de alguma fonte de luz dentro. 'Será que desistira de esperar e fora dormir?' — foi o pensamento mais tranquilizador, contudo ela sempre esperava o pior e mil outras possibilidades passaram por sua cabeça. A noite estava clara pela lua que brilhava, neste momento sem nenhuma nuvem. Agravou-se ainda mais quando ela se aproximou da entrada da choupana e a porta da frente estava arrombada. No lugar da porta apenas o vazio escuro ameaçador, das dobradiças lascas de madeira pendiam irregularmente. O som de mobília caindo, madeira se partindo e vidro se estilhaçando alarmou a jovem, ela rapidamente retirou o capacete e abandonou a lambreta caída de qualquer jeito na frente da casa, mas não sem antes retirar um embrulho do compartimento debaixo do assento. Correu para dentro com o coração palpitando à mil. A luz prateada da lua invadia as janelas e derramava um brilho azul-cinzento sobre móveis fantasmagóricos devido à penumbra, outrora tão aconchegantes em sua lembrança. Ouviu-se um grito juntamente com um rosnado que então se tornou um uivo ameaçador. Quando a jovem se esgueirou para o cômodo seguinte, tudo acontecera muito rápido: um estouro e foi arremessada de volta juntamente com um amontoado de pelos que caía sobre ela. Antes de se levantar ela viu que havia ao seu lado um lobo maior que um cavalo; de orelhas grandes e pontudas; de boca monstruosa repleta de dentes ameaçadores, da distância em que se encontrava era capaz de sentir o hálito fétido dela; os pelos eram cinzentos, mas com partes brancas e pretas; o pior eram os olhos amarelos intensos que brilhavam como se tivessem luz própria. Estava paralisada de medo sem conseguir se levantar. Diferente do lobo que rolou e logo estava acima dela. Novamente um disparo, cápsula caindo oca no assoalho de madeira e o som do carregamento da espingarda. — Vovó! — gritou ela se levantando e correndo. O lobo fora afugentado pelo segundo disparo da espingarda. A velhinha vestia uma camisola rasgada e tinha os cabelos grisalhos enrolados presos por uma redinha. Através da camisola era possível ver que ela vestia um colete tático de kevlar! — Trouxe o que precisávamos? — perguntou a velinha fazendo pontaria e disparando mais uma vez. Contudo, desta vez o lobo se recuperara e se erguera em duas patas. Não era um lobo e sim um lobisomem. — Estão aqui. — a jovem desenrola outra espingarda e entrega alguns cartuchos para a vovozinha. O lobisomem de pé tinha quase três metros de altura, só que os dois disparos certeiros que a velhinha fizera anteriormente o deixara debilitado. Prata — elas sabiam a sua fraqueza. Ele avança contra as duas, que saltam uma para cada lado, a vovozinha rolou sobre a cama, atrapalhando-se entre os lençóis e travesseiros, deixou a espingarda cair. Já a sua neta fora mais ágil e rolou a favor da parede e, ainda sentada, disparou contra as costelas do lobo duas vezes. Ele foi arremessado contra o guarda-roupas, recebendo uma chuva de camisolas e ceroulas sobre sua cabeça. A neta ajuda a avó a se levantar e juntas descarregam tudo o que têm contra a fera que, muito debilitada, nada pôde fazer para impedir a sua morte. No amanhecer do dia seguinte, as autoridades locais se depararam com a antiga choupana em chamas e um único corpo de um homem dentro dela. Mais tarde a perícia concluiu que ele havia sido morto antes do fogo por disparos de espingarda. A choupana fora alugada por uma senil senhora há pouco mais de um ano, no entanto seus documentos eram falsos. Ninguém sabia quem era aquela senhora ou a garota de capacete e lambreta vermelha.

Um conto moderno de Chapeuzinho VermelhoWhere stories live. Discover now