Capítulo 1 - O que você chama de paranoia?

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Estava jogada na cama, como era de costume passar meu dia. Com o caderno no colchão, caneta em mão pairando sob a página e celular na outra, analisando aquela conversa pela décima vez. Eu ri.

Cada cliente meu tinha uma ficha, eles obviamente não sabiam. Muitas fichas só levavam nome e número de telefone, outras continham detalhes extensos, gostos, preferências, datas de chamados com observações de atendimento, endereços e pequenos dados colhidos no canto da minha memória ao longo dos encontros. Por algum motivo eu ainda me identificava mais com papel e folha do que com o dispositivo à minha mão. Aquele caderno me dava uma sensação de poder e segurança.

Abri meu anúncio mais uma vez, estava na hora de postar alguma foto nova pra subir ele nas categorias e melhorar as visualizações. Só por rotina, passei os olhos pelas palavras que já conhecia de cor. Vai saber... as vezes eu adicionava ou retirava alguma coisa só pelo fator mudança, pra não ficar batido, ou pra adicionar algo novo que aprendi.

"Oi meu amor, meu nome é Kelly, uma ruivinha gordinha de 19 anos pronta para realizar seus desejos e fantasias com discrição..."

"... posso ser o que você quiser..."

"Trabalho com os seguintes fetiches: ..."

Eu sempre me encolhia ao ler aquelas palavras, não era bem um sentimento de vergonha e sim uma luta mental entre as minhas duas personalidades desenvolvidas. Eu e Kelly éramos pessoas diferentes no geral, mas aquele momento ela tinha que tomar o espaço dela e raciocinar como ela.

Cliquei em no botão para editar o anúncio e adicionei a foto que havia tirado na noite anterior pensando nisso.

Voltei para o Whatsapp e ele já estava na conversa desejada, aquela que me fizera rir minutos antes.

"Adicionei uma nova ft no anúncio. Acho que vai gostar [emoji diabinho sorrinho]"

Ele visualizou, nem se deu ao trabalho de responder na hora... aguardei os segundo necessários para ele abrir o que eu sabia estar favoritado em seu celular, procurar a foto nova e namorar as antigas da galeria.

"Não posso te ver hoje.
Queria.
Mas não será possível"

Acredito que minha cara foi digna de um meme de indignação. Nem todo cliente era suscetível ou apaixonadinho. Mas eu sabia muito bem analisar e jogar com as fraquezas deles e minhas forças. Veja bem, eu não me considero uma má pessoa, apenas aprendi a usar o mundo como ele me usa e tirar minhas vantagens disso, sem pisar em ninguém. Todo mundo é grandinho pra tomar decisões, certo?

Respirei fundo e encarnei o lado doce da Kelly. O lado que me destacava das outras meninas. Meu atendimento era baseado no fato de que eu agia como uma pessoa e não um robô do sexo por dinheiro.

"Hey, tudo bem por mim. Confesso que fiquei preocupada, mas não quero me intrometer na sua vida. Só espero que esteja tudo bem e se não estiver, se resolva logo. Saudades, quero te ver em breve, bem e poder te botar de joelhos na minha frente como você merece, meu corninho."

Cuckolds... meus clientes preferidos. A gente mantinha uma relação onde eu fingia ser esposa/namorada e eles queriam ser tratados como corno. Alguns gostavam de humilhação, outros apenas assistir, alguns queriam participar, outros se fingiam de frustrados com a situação a ponto de chorar. Cada um tinha uma dinâmica e todos eles estavam escritos detalhadamente no meu caderno. 

Eram os clientes mais fáceis de tirar uma grana, ganhar mimos, e até mesmo quando eu não tinha trabalho nenhum, se algo estivesse mal, uma conta atrasada, despensa e geladeira vazias, vontade repentina de delivery, era só abrir umas 4 conversas ao mesmo tempo e algum dos meus maridos/namorados atenderia meus desejos.

Ele não visualizou ou respondeu na hora. Mas continuou online. Minha personalidade birrenta da Kelly queria fazer algo em relação àquilo. Afinal, corno bom é corno obediente, certo? Mas existe uma linha bem fina entre o roleplay e se tornar intransigente na vida do cliente. E eu era esperta demais para me deixar levar.

Olhei as outras janelas, mas nada me fez querer "trabalhar", parei rapidamente na conversa com meu Dom, outro cliente, mas esse gostava de me fazer de escrava. Stephano era tudo que uma mulher com predileção por submissão podia querer, cheguei a sentir aquele formigamento na barriga olhando para a foto dele no ícone pequeno da lista de contatos. Pra quem trabalhava o dia todo atendendo fetiches alheios e encarando um personagem que se dividia em vários, meticulosamente calculados, ele era um alívio de momento. Embora assim como todos os outros ele soubesse de uma versão superficial e editada da Kelly, ele era o que mais perto se aproximava de conhecer a outra 'eu'. A original.

Mas eu não podia mandar mensagem. Alguns clientes eram assim, até mesmo os cornos, casados com outras mulheres e me procuravam regularmente. Como a boa menina discreta que sou, aguardava eles entrarem em contato e apenas respondia, nunca iniciando a conversa. Revirei os olhos pensando nisso e decidi que não trabalharia naquele dia.

Era uma decisão normal. Eu não me considerava uma profissional regular, apesar de ser muito boa. Eu atendia quando era chamada e quando estava com vontade, as duas coisas juntas. Já "demiti" vários clientes por simplesmente não querer mais atender aquela pessoa. Fazia o suficiente para pagar meu aluguel, contas, comida, e uma bobeira ou outra que quisesse. Além disso tinha meu fundo de emergência. Suficiente para ficar uns 6 meses sem trabalhar e pagar todas as contas vivendo bem. Um ano se eu vivesse em racionamento total.

Abri o app do meu dinheiro na conta para ver como seria meu dia. No meio da noite havia recebido uma transferência de um dos meus cornos, olhei pro teto agradecendo a sorte. Peguei o outro celular que estava no carregador. Abri meu Whatsapp pessoal e mandei mensagem pros meus amigos no grupo "Casa das putas". A ironia desse nome, é que eu era a única puta e ninguém sabia. Havíamos colocado esse nome no grupo quando ainda morávamos juntos e a primeira a sair da casa, eu, foi a primeira a se tornar realmente prostituta.

"Almoço?" mandei.

Jordan: "Sobe [carinha rolando os olhos]" 

Jenyfer: "Trás o ventilador, queimou um aqui. Inferno"

Eu ri. Levantei da cama e joguei uma roupa qualquer, no bolso o celular de trabalho em modo vibrar, o pessoal e a chave. Olhei para a porra do ventilador todo cheio de poeira, considerei limpa-lo por um segundo, antes de lembrar que eu morei por um ano com aquelas pessoas e ninguém era 'oh meu deus que limpeza' de pessoa. Bati um pano de chão pra tirar apenas o excesso. E já carregando aquele trambolho olhei ao redor procurando meus óculos.

Uma vez equipada completamente, sai de casa, em direção à Casa das Putas. Exatamente 3 casas depois da minha, na mesma vila, no segundo andar do sobrado antigo. A porta estava aberta como sempre. Por motivos de confiança na vizinhança e falta de dinheiro para consertar a fechadura. Eu já havia oferecido, mas eles sempre deixavam o assunto pra lá.

Entrei na casa já posicionando o ventilador virado pra Jenyfer, que estava no sofá mexendo no celular, enquanto seu irmão mais velho, Jordan, estava fumando, sentado à mesa, jogando algo online com um copo de café manchado ao seu lado. Enquanto eles me ignoravam e eu ligava a máquina na tomada, eu sorri, lembrando de quando morava ali.

Jordan e Jenyfer eram os filhos mais velhos de uma família grande e confusa. Saíram da casa dos pais pra preservar a sanidade e buscar um pouco de independência. Nós éramos amigos há alguns anos e quando as coisas complicaram financeiramente pra mim, coincidiu com a mudança deles pra Vila e eles prontamente me chamaram pra ir junto e me ajudaram. 

A Vila era composta de casas de todas as formas. A deles por exemplo eram dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Tudo pequenino e abarrotado. A minha era um quarto e sala, cozinha e banheiro, com os cômodos bem maiores e mais arejada, mas por algum motivo era mais fácil eu ir pra lá do que eles me visitarem. 

Sentei no sofá pra pegar o vento. A Jenyfer levantou a cabeça do celular finalmente para reconhecer minha presença.

-Maravilha, parei de derreter. 

Eu ri.

-A gente precisa de um ar condicionado. - Jordan nem tirou os olhos do jogo para interagir, era um dom que eu admirava.

-Com dinheiro do seu cu.

Eu ri mais ainda, Jordan sorriu pra tela. Essa interação entre irmãos era algo que eu sentia falta, mas me mudar pra outra casa e ao mesmo tempo continuar perto foi a melhor decisão quando eu comecei a fazer minha renda alternativa. 

-Ifood? - sugeri abrindo o app no celular. 

-Com dinheiro do seu cu. - Jenyfer repetiu rindo em tom irônico.

-Exatamente - Respondi baixinho. - Deixa comigo! - Falei mais alto.

-Olha ela... cheia da grana... Quero açaí!

Por algum motivo sempre que a gente pedia comida, não importa que horas fosse ou qual fosse o tema do dia: pizza, hamburguer, esfirra, pf, lasanha... a Jenyfer sempre queria Açaí.

Jordan fechou o notebook bruscamente e pegou o controle se jogando do meu lado. Ligou a TV e colocou no seu programa predileto: "Doomsday Preppers". Um bando de americanos malucos que se preparam para o apocalipse e mostram seus sistemas de preparação e para o que estão se preparando e são avaliados por outros malucos, mais doidos ainda que dão nota pras preparações. Eu já conhecia a maioria dos episódios de cor, de tanto que ele assistia aquilo.

-Você não cansa dessa paranoia não?

Jenyfer olhou pra mim com cara de quem diz: sabe de nada.

Jordan ficou sério. E antes de se lançar numa explicação detalhada de como seria seu bunker subterrâneo e suas preparações se tivesse dinheiro, me perguntou:

-O que você chama de paranoia?

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⏰ Last updated: Nov 08, 2021 ⏰

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Pode me chamar de KellyWhere stories live. Discover now