Prólogo.

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A garota já correra bons quilômetros adentro da floresta desde que ouvira o segundo tiro de espingarda. Ziguezagueando entre as árvores, entre galhos e espinhos, pulando troncos de árvores caídas. O fôlego já lhe faltava a bons minutos, seus pulmões queimavam sem ar, e as pernas já falhavam de exaustão. Mas ela devia continuar, encontrar um bom abrigo, longe de todos da matilha, pois sabia que não a perdoariam. A culpariam por toda a eternidade. O que é muito tempo. Mas não só eles a culpariam, ela própria envolvia-se em uma bolha de arrependimento e culpa. Atribuindo a si características que não condiziam completamente com seu caráter.

Culpada.

Covarde.

Desonrosa.

Ela devia tê-la salvado, era sua obrigação. Mas o medo tomou todo o seu ser ao ponto de só ouvir a voz doce de sua mãe mandando-a correr. E ela correu. Foi contra sua obrigação, sendo devota toda e completamente a sua mãe. E agora ela estava morta. Arrependimento. Todos os seus pensamentos remetiam a isso. Seu pai nunca a perdoaria, muito menos seus irmãos.

Ajoelhou-se ao lado de uma árvore, ao que lágrimas pesadas caiam sobre suas bochechas rosadas pelo recente esforço físico. Perdera sua mãe, e, possivelmente, seu irmão, Draco. Não saberia o que fazer nem se quisesse. Estava apavorada demais para pensar com clareza e era nova demais para passar por isso. Aos sete anos, deviam apenas poder brincar. Mas não, para seu pai ela devia tornar-se uma guerreira. Uma líder. Devia dar a sua vida pela matilha. O que ele não sabia é que ela se sentia fraca, tinha medo da morte e não tinha certeza se era boa o suficiente para seguir o futuro que ele planejara. Mesmo sendo seu destino. Sua obrigação.

Seu pai.

O que ele diria? Ele a deserdaria. Ela era um desgosto para o Alpha Apólyti. Onde já se viu? Uma Alpha, da matilha anciã, com medo da morte, da guerra e da luta. Uma Yperaspistis com medo de defender seu povo. Com medo da obrigação que lhe foi atribuída desde o ventre. Ela era uma decepção. Nem ao próprio Geminae não foi capaz de salvar. Sobrepôs seu medo a obrigação de salvar metade de sua alma. Pois era isso que eram. Uma só alma.

Respirou fundo algumas vezes, seus instintos, descontrolados pelo medo, atiçaram-se ao ouvir passos sobre o chão coberto de galhos e folhas secas. Suas pupilas dilataram-se. Aguardou. Olhando ao redor, a procura de qualquer sinal de movimento. Mas só ouvia os passos cada vez mais perto, mais altos. Seu ouvido zumbia com o aumento da circulação. Levantou-se, sendo tomada pelo medo. Em posição de ataque, pôs as garras para fora e olhou ao redor, avistando uma figura esguia sair de trás de uma das altas árvores. Era um rapaz, cabelos pretos como o crepúsculo, pele tão branca quanto porcelana e olhos incrivelmente azuis, os quais passavam a sensação de mistério. Escondeu rapidamente as garras e presas. Não poderia entregar seu verdadeiro eu tão rapidamente. O garoto parou a alguns passos de distância, como se a estivesse estudando.

"Desculpe-me a intromição." Disse o desconhecido, enquanto a analisava cautelosamente. "Está tudo bem?" Perguntou hesitante em se aproximar mais. A garota, então, relaxou os ombros e confirmou com a cabeça. "Certo. Bem, meu nome é Corvus, e o seu?" Perguntou-lhe, enquanto mordiscava a lateral interna da bochecha.

A garota hesitou em responder, analisou os olhos de Corvus, à procura de algum sinal de perigo ou ameaça. Mas apenas encontrou algo ao qual ela achou ser sinceridade. Inspirou uma grande quantidade de ar, mordeu os lábios, um pouco indecisa. E, então, respondeu. "Meu nome é Andrômeda."

"Muito prazer, Andrômeda." Disse o garoto, ao sorrir, mostrando seus caninos protuberantes. Um vampiro. Sua mente foi tomada por uma confusão de flashbacks, inclusive Impius, o Kýrios dele. Maldito seja o assassino de sua mãe. Seus instintos entraram em alerta novamente, pupilas assustadoramente dilatadas, tampando todo o tom esmeralda da íris, presas surgiram em sua arcada dentária e longas garras saíram da ponta de seus dedos. Apenas um passo alheio em falso e a garota, que a pouco inofensiva, passaria a forma de um enorme lobo branco com olhos incrivelmente verdes. O garoto ao perceber a recente hostilidade distanciou-se uns passos. "Você é uma Lykánthropa" a expressão surpresa, tomando completamente a sua face.

"E você um 'chupa-sangue' nojento." A voz não tinha mais o doce tom de uma garotinha, mas sim do lobo interior que habitava sua alma. "O que você quer?"

"Não sou um 'chupa-sangue'" deu um passo à frente, mas arrependeu-se ao ouvir um rosnado. "Não vou fazer mal a você. Quero ser seu amigo." Anunciou com as mãos levantadas em um gesto simbólico de rendimento.

"Nós somos rivais." Exclamou a garota como se fosse óbvio. "Não podemos ser amigos. Além do mais, eu nunca confiaria em você."

"Não ligo para essa rivalidade absurda. Na nossa amizade seremos só eu e você. Sem Clãs ou Matilhas. Apenas nós." Engoliu em seco e então deu mais um passo a frente, surpreendendo-se ao não receber nenhuma reação negativa. Então, continuou. "O que acha? Amigos?"

A menina ponderou, cogitando todas as consequências disso, além do fato de ele ser um vampiro, a raça qual matou sua mãe e, também, a que ela mais tinha ódio. Mas ela não tinha mais muito a perder. Oras, ela havia acabado de perder sua mãe e seu irmão, as únicas pessoas que ela amava verdadeira e completamente. Então, o que ela perderia? O orgulho de seu pai? Ela nunca o teve mesmo. O confiança de seus outros irmãos? Também nunca teve, a não ser por Draco, seu Geminae. Mas havia o perdido. "Certo" recebeu um sorriso cauteloso em troca. "Mas eu realmente duvido que algum dia confiarei em você. Sua raça é desprezível."

"Não somos todos iguais." Olhou para o céu, ponderando as conseqüências a sua próxima pergunta. "Mas, por que nos odeia tanto?"

A menina o olhou com descrença, como poderia ele ser tão ingênuo a esse ponto? Analisou-o a procura de uma falsa inocência, mas nada encontrou. Revirou os olhos e tratou de respondê-lo. "Vocês são cruéis, sanguinários. Como dizem as lendas, filhos do sangue, do mal." Fechou os olhos, ao lembrar-se do semblante dolorido de sua mãe ao receber o tiro certeiro em seu coração. Bala de prata. Fatal. "E hoje provou-se o quão perversos são. O quanto seu Kýrios é nefando."

"O que aconteceu hoje?" perguntou incerto sobre querer a resposta. Viu a dor nos olhos da loba a sua frente e se arrependeu. De algum modo, entendeu que havia perdido algo importante e que sua raça era a culpada.

"Ele os matou!" sua voz saiu como um rosnado."Seu Kýrios. Em sua própria perversidade, os matou por prazer." O tom de voz levemente mais alto e forte, porém quebrado. "Meu Geminae e minha mãe." Uma lágrima solitária escorreu pelo seu rosto, a qual ela limpou rapidamente, porém com a tormenta das lembranças, os gritos ainda tão vividos e a dor, ela não pode mais suportar e desabou de joelhos no chão com as mãos nos cabelos de cor clara, quase platinada, soltando toda a angustia. Não tendo mais forças para nada, nem para repudiar o garoto por chegar perto e abraçá-la. E eles ficaram horas assim. Sem mais palavras. Apenas o silêncio, enquanto a garota criava coragem para enfrentar sua família e a sua própria culpa, a qual carregaria até seu túmulo. Quando se fez noite e a lua refletiu no céu, eles despediram-se prometendo encontrarem-se no mesmo lugar, n'outro dia. Então a garota marchou para casa, um pouco mais confiante com o recente 'amigo', se é que podia chamá-lo assim, e enfrentou de cabeça erguida, com a rotineira expressão de indiferença moldada, todas as palavras e castigos de sua matilha, mas completamente quebrada por dentro.  

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⏰ Última atualização: Oct 29, 2020 ⏰

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