Criança da noite

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De joelhos, o chão de madeira escura, o candeeiro iluminando as colunas da cama, enquanto recitava...

Ich bin klein,

mein Herz mach rein!

A mulher (sua mãe?) em pé, atrás dele, não tinha rosto. Era a luz do quarto e brilhava, enquanto ele dizia as palavras decoradas.

Soll niemand drin wohnenals

Jesus allein.

Um toque em seu rosto e toda a claridade se foi...

Amen!

E incendiou-se.


Acordou no seu amanhecer ao contrário, laranja e cor de rosa. Vestiu a camiseta preta, nenhuma outra cor lhe agradava muito agora. Precisava sair para comer alguma coisa.

Era muito bom aquele bairro. Gente de todo tipo, era só mais um esquisito.

Chegou à padaria. Uma loira de bochechas coradas comprava pão na sua frente. Esperou sua vez, pediu qualquer coisa pra levar, pagou deixando troco e seguiu, por conveniência, a direção da loira.

Apertava o saco de papel na mão, salivando. Passo após passo. O marulho do papel pardo. Passo e mais um passo. A sapatilha dela arrastava no calçamento. Passo, passo, passo... De repente rua deserta estreita, deu o bote.

Agarrou com força o corpo pulsante, estava quente, era macia, olhava em assombro. Ele sorriu, enfiou a cabeça no decote v da blusinha rosa, os dentes se enfiando na carne macia do seio, enquanto uma de suas mãos cobria a boca da moça. O sabor férreo o inundou. Delírio.

De repente, a vida voltava a costurar suas rendas nos músculos frios. Como se tudo nele se reinaugurasse, a sua desumanização não fosse completa.

Os dedos que abafaram o alarme da mulher se dissolveram e deslizaram pelo pescoço e então pelos cabelos. O dourado como a luz da vela, o rosto das suas reminiscências.

Tomado de febre, abocanhou mais, mordeu, deixando o sumo lambuzar seus lábios. Ah, aquela vez que o suco da maçã sujara a camisa branca...

A embuçada apareceu enfim, a mensageira. Era hora de terminar o jantar. Retirou os dentes, devagar, lambeu o que restava grudado na pele.

Despencara na calçada. Abraçou a cabeça contra o próprio peito. Beijou aqueles cabelos de ouro. Fez um carinho no rosto, e repetiu, devagar:

Ich bin klein,

mein Herz mach rein!

Soll niemand drin wohnenals

Jesus allein.

Amen!


Contos para depois da meia noiteOnde histórias criam vida. Descubra agora