Chapter I

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O sorriso indecifrável de Michael faz sombra às minhas costas, escoltando-me rumo às portas de contenção do Outpost 2 como uma marcha fúnebre assustadora. O antigo rádio ecoa uma canção ainda mais antiga, que se repetia incansavelmente e ironicamente desde o dia que ele aparecera e começara seu monólogo sobre a chance de um de nós irmos para o Santuário. A repetição de lembranças de sua chegada invade minha mente como uma mistura de bálsamo e terror, a mesma dualidade que cerca minha existência desde que seus olhos cinza se encontraram com os meus pela primeira vez.

— Pergunto-me se esses novos cavalos sobreviverão até chegarmos no Outpost 3. -ele murmura em seu tom peculiar de ironia, dissipando sua voz contida e elegante que arrepia cada pelo de meu corpo sem dificuldade alguma.

Sou incapaz de respondê-lo.

Tento buscar a letra que se impregnara em minha mente, apesar de não suportar mais ouvi-la. Parece menos perturbador do que tentar desvendar o que se passa com o loiro que me acompanha.

Parece menos perturbador do que me recordar do que acontecera nas últimas 24h.

Every breath you take

Every move you make

Every bond you break

Every step you take

I'll be watching you

A canção antiga ressoou pelo velho rádio do salão de encontros do Outpost 2 pela primeira vez enquanto estava debruçada sobre o chão, limpando-o, como me obrigavam a fazer desde que havia sido resgatada do apocalipse. Às vezes perguntava-me se realmente valera a pena ter escapado de uma morte instantânea por uma bomba nuclear para me tornar uma mera formiga operária da Cooperativa. Porém, pensar na probabilidade de morte parecia ainda mais mórbido do que me entregar à crise existencial e nos pensamentos a respeito da razão pelo qual fui escolhida para sobreviver.

Ser confinada a uma área subterrânea com comida regrada e quaisquer vestígios de liberdade individual não parecia uma forma de viver. Lembrar que o resto do mundo havia sido engolido por chamas e o inverno nuclear fazia-me sentir ainda pior. Meu espírito claustrofóbico se entregava à vontade de cavar uma janela com as mãos até que as unhas de meus dedos fossem arrancadas, mas a falta de coragem era o suficiente para me impedir de uma punição.

Porém, naquele dia em especial, juntamente à súbita mudança de música, uma energia quase torturante invadira os ares do abrigo subterrâneo, obrigando-me a erguer a cabeça com a entrada das responsáveis do Outpost juntamente a um homem alto, de grandes cabelos loiros cujo trajava roupas pretas e tão antiquadas quanto às quais nos induziam a vestir. Quem quer que comandasse a Cooperativa, imaginava eu, nutria um fetiche literário pela Era Vitoriana ou algum tempo passado. Entretanto, no mero segundo que erguera minha cabeça para o novo visitante, meu corpo se retraíra numa paralisação quase anormal.

A escova de limpeza caíra de minhas mãos e, ainda ajoelhada sobre o chão, toda minha atenção se voltara de forma automática e impensável até o par de íris cinza que rodeava o local como uma ave de rapina. Por ser uma serviçal, esperava que ele sequer retribuísse o olhar, mas, em ato que causara minha descrença, percebi que seu rosto se virara em minha direção e uma expressão de inquisição o vestiu. O simples ato de ter minha existência percebida por ele já era o suficiente para perder meu fôlego e me causar uma série de reações que sequer eu entendia.

Ele se apresentara a todos como Michael Langdon, um representante da Cooperativa.

Um toque de vermelho sobre suas pálpebras o tornava imediatamente diferenciado dos demais. O alto escalão do Outpost 2, que pagavam por sua entrada no abrigo, assim como os quais foram escolhidos por sua genética perfeita sequer chegavam aos pés do homem recém-chegado em nenhum dos requisitos que os comparava silenciosamente. Havia algo em Michael que instigava-me de um modo não saudável. Sua presença simplesmente invadia o local, tornando-o sufocante, quase angustiante. E o pior dessa sensação era que culpávamos a nós mesmos pelo desconforto. Ele era o agente que causava-nos a agonia por nós mesmos, como se o encontro com ele tornasse-nos suscetíveis a nossas fraquezas.

Every Breath You TakeOnde histórias criam vida. Descubra agora