II. Feitos de sombra

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É difícil definir onde uma história começa. No fim, acho que para todos os detalhes terem acontecido como aconteceram, voltaríamos à criação do mundo: foi lá que tudo teve início. Tomei a liberdade aqui de escolher meu ponto de partida, o que me levou a passar pelo portal escavado na rocha sem saber se faria o caminho de volta.

Eu não tinha muitos problemas para dormir; era uma adolescente de dezessete anos comum, mas, naquela noite, as corujas piavam como loucas, me impedindo de mergulhar completamente na inconsciência.

Me virei para o outro lado. Aquele era mais um ponto de negativo de viver numa floresta. Será que minha mãe gostava, por isso vivia aqui? Talvez gostasse da paz; do cheiro de terra molhada quando chove; do som dos grilos e do cheiro doce durante as estações quentes. Poderia ela odiar? Quem sabe meu pai a tivesse feito vir pra cá? Como eu saberia? Não podia me perguntar por dois, então escolhi aquela que ficou, até seu tempo acabar.

Meu pescoço estava suando. O que eu tanto buscava? Era a minha origem?

De repente o som parou. Todos os sons pareceram silenciar. Um silêncio mortal tomou conta.

Não sabia se estava sonhando. Me encolhi de dor e soltei um gemido; algo no lado esquerdo do meu abdômen.

O gemido se transformou em grito, o único som cortando a noite. Minha mão pressionou onde doía, mas meus olhos não se abriam. Paralisia do sono. Senti um desespero crescer no meu peito, mas aí a dor parou e consegui despertar de uma vez, desesperada, sugando grandes lufadas de ar. Uma palavra ecoava por mim mente: começou.

Suando frio, sentei ereta na cama e levantei a camiseta do pijama. Estava escuro, não consegui ver nada, então coloquei os pés descalços no piso de madeira e liguei a luz do abajur, agindo no automático. Primeiro bocejei e apoiei a cabeça nas mãos, os cotovelos pressionando minhas coxas. Deslizei os dedos pelo cabelo antes de me lembrar do motivo de ter acendido aquela luz que, agora eu percebia, piscava e fazia aquele zunido de eletricidade. Balancei a cabeça, cansada, o coração voltando a desacelerar e olhei para onde havia sentido a dor. Vi a marca que havia aparecido. Um círculo maior envolto de um fio verde que dava voltas, com outros cinco menores ao redor como num diagrama esquisito. No meio, um ponto vermelho escuro que parecia ter sido feito por uma caneta tinteiro, ou uma gota pingada.

— Mas que m... — falei em voz alta, passando a ponta dos dedos no contorno.

Ao meu lado, o meu medalhão estava aos pedaços entre os lençóis. Metal quebrado.

Será ainda estou sonhando?, pensei. Um pesadelo bizarro, ao que parecia.

A lâmpada estourou, repentinamente, e meu grito quase encobriu o da minha tia no andar de baixo. Era a minha resposta — estava muito acordada.

Saí pela porta até as escadas e desci correndo, com a mente ainda anuviada, tentando pensar com nexo. Não havia chegado ao final dos degraus quando vi: ajoelhada no tapete vermelho e dourado, estava tia Margareth, com cara de medo e... mais alguma coisa. Determinação?

Um homem parecendo ser feito de sombras, mas sólido o bastante, somente a olhou intensamente e ela gritou de novo. Mas que m..., pensei novamente, dessa vez sem dizer.

Outro homem de preto encapuzado simplesmente se materializou ali, na minha frente, uma figura surgida do ar. Tapei a boca para não arfar em surpresa e incredulidade. Estava estacada um pouco antes do fim da escada.

Impossível. Magia não existe. Não podia existir. Era só bobeira de criança.

— Onde ela está?! — exigia o encapuzado perto da minha tia. Ainda não tinha me visto.

Tia Margareth cuspiu sangue no seu tapete antes limpo.

Sem pensar, me inclinei para frente. E o degrau em que estava pisando rangeu. Arregalei os olhos e abri a boca, me repreendendo em silêncio. Como podia ser tão burra?

— Corre! — ordenou minha tia. Fiquei parada, não ia deixar a única família que me restava. Tomando uma decisão, dei um passo largo e peguei um atiçador da lareira com um movimento rápido e o levantei para eles.

Os homens, que ainda pareciam ser feitos de sombras sob os capuzes, me olharam com certo deboche, quase me desafiando a usar aquele pedaço de ferro em minhas mãos. Mas não se aproximaram.

Será que podem sentir meu medo como cães?, me perguntei. Meu coração parecia uma metralhadora no peito, atirando sem nunca ficar sem munição. Podia ouvi-lo pulsando pelo meu ouvido.

Vinda do nada, Elena surgiu atrás deles segurando uma faca, e encostou o indicador nos lábios. Ela tinha um timing perfeito. Depois do nosso encontro na floresta, dois anos atrás, ela havia ido até minha casa. Minha tia não ficara exatamente feliz, mas fizera pipoca e nós fomos escolher um filme. Ela quis Indiana Jones. Como eu poderia não ser amiga de alguém que amava Indiana Jones e estava coberta de terra?

— Quem são vocês? — me obriguei a perguntar para que eles não ouvissem os passos leves de minha amiga se aproximando sorrateiramente. Devia ter vindo para umas de nossas aventuras noturnas. Olhei diretamente para eles também, para não mostrar o que havia me chamado a atenção.

O problema é que Elena não foi rápida o bastante. Um dos encapuzados se virou bem na hora, torceu seu braço, fazendo a garota gritar. A faca caiu com um som metálico. Um dos homens de sombras bateu em seu rosto com as costas da mão, derrubando-a com o longo cabelo sobre o rosto, o lábio agora cortado.

Avancei com o atiçador na direção de um dos invasores e ele, assustado e surpreso, os olhos brilhantes como vagalumes, desapareceu, mas não sem antes me nocautear.

O segundo deixou a casa com Elena de lábio sangrando e a levouarrastando-a como um saco pesado, mas eu só consegui observar enquanto minhavisão escurecia. Estiquei o braço na sua direção. Os gritos vindos em todas asdireções pareciam distantes.

Os Últimos Descendentes - SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora