Oito horas da manhã e ainda vejo a lua. Grande e translúcida em meio ao límpido céu azul. Ao meu redor vejo uma terra devastada, manchada pelo sangue de soldados em mais uma guerra sem sentido.
Almas vagando perdidas, sem saber que para elas este conflito já chegou ao fim. Acolho uma a uma, enviando-as para lugar qualquer, onde encontrarão o destino já selado em seus últimos suspiros.
Terminado o recolhimento desse quadrante, sigo para uma das tendas onde cuidam dos feridos, aguardando novas baixas. Não me tomem como uma ave carniceira, é apenas o meu... trabalho.
Contudo, alguém me chama a atenção, mais do que aqueles prestes a falecer. Um enfermeiro. Bem jovem, ainda que hábil. Com tanta ou mais experiência em sua função do que seus colegas.
Não digo isso pela quantidade de vidas salvas, feridas curadas ou perspicácia para improvisar em tempos de guerra. Mas sim, pelo seu dom de ouvir o lamento de seus pacientes. E sobretudo, mentir.
O rapaz, de olhos brilhantes e pacíficos, tem uma eloquência nata para embalar o delírio final de soldados aterrorizados pela sombra da morte, ditando preces e promessas que nunca serão cumpridas. Ele distraí, faz rir, acalenta essas almas como poucas vezes presenciei em minha longa existência.
E à noite chora cada batalha perdida, não em campo, mas a travada com a vida.
Isso desperta em mim certa curiosidade. E encanto, diga-se de passagem. Gostaria de perguntar o porquê de tamanha dedicação se a mesma cairá no esquecimento, notada por poucos e condenada pela maioria de seus superiores como um excesso. Uma fraqueza, até.
"Descanse um pouco, ok?", ele diz, limpando a testa febril de um soldado mais velho que ele. "O senhor ficará bom, assim que essa guerra terminar você verá sua família. Tenha fé."
Fé. Ele a pede sem mesmo a ter. E com pesar assiste ao soldado sorrindo, até desfalecer sob seus cuidados. Mais um que recebo sob meu manto e encaminho para um cenário em que será herói da própria história.
O caminho trilhado agora é duro, vil, infundado acerca de um mundo melhor. Mas é preciso escolher lados, torcer para não ser o pior.
A tropa, reduzida a um terço do número inicial, por fim chega a uma cidade amiga enquanto esperam reforços para continuar a campanha.
O tédio me faz tomar uma decisão arriscada: me mesclar aos habitantes a cidadezinha e me oferecer para seguir junto ao exército. Não tenho nada a perder, apenas memórias a ganhar — nem deixo de fazer meu trabalho, afinal, estou em todo lugar.
Imaginam-me como uma figura distante, sombria, macabra. Compreendo a crença popular. Todavia, conviver com os mortais me alivia de uma rotina solitária. Nessas frações de tempo, conheço divergentes e amistosas partes de mim. E gosto disso.
Mais do que deveria.
Junto-me à equipe médica, ironicamente ajudando a salvar vidas que cedo ou tarde me encontrarão mais uma vez. Entre um turno e outro, me aproximo daquele enfermeiro, que agora acaricia um delicado broche com seu polegar.
Interrompo seu transe perguntando, meio sem jeito, a quem pertence o objeto. Ele retoma seu usual sorriso, agora nostálgico.
"Era de minha mãe."
"Era?", indago, sabendo o rumo que irá se seguir.
"Sim. Ela faleceu quando eu tinha dezesseis anos. Era o broche preferido dela, dizia trazer sorte. Não sei se ainda acredito."
"Sinto muito", respondo com sinceridade. "Posso imaginar a dor desta perda."
Ele me diz o nome dela e quase que de pronto relembro sua história. A mulher dos olhos brilhantes e tristes. Eu a via dia sim dia não sentada no pátio do hospital com o marido e o filho, sorrindo fraco em meio a paparicos.
Ela os olhava com amor e tristeza, como se soubesse que não teria muito tempo. Seu quadro evoluiu rápido, não deu conta de suportar as complicações da doença.
Quando a recebi ela estava resignada, diferente da maioria dos casos. Seria menos uma despesa para a família, brincou que eu havia demorado. "Tudo acontece em seu tempo", rebati. Ela assentiu com o olhar, e antes de partir me agradeceu por ser gentil. Poderia a Morte ser gentil?
Continuamos a conversar madrugada a dentro. Efeitos da guerra, sonhos, amores. Algo estranho se formava em meu âmago. Acredite se quiser, às vezes, a Morte se apaixona por sopros de vida.
Os dias no campo de batalha parecem eternos. Avançamos, perdemos homens, recuamos. Há rumores de um armistício.
Os soldados estão exaustos, cada vez mais questionando o sentido de todo esse conflito. Honrar a família, a pátria, a si mesmo... a ideia de levar orgulho já não traz mais tanto conforto. O horrores vividos soam desumanos.
"Eu vou ficar bem, não se preocupe", o enfermeiro afirma, ardendo em febre, ao apertar minha mão. Com os lançamentos de gases tóxicos, ele havia sido uma das vítimas. Vê-lo sofrer me provoca angústia.
Não, ele não vai sobreviver.
Esse é o risco de se apegar a mortais. Saber de antemão quando irão partir e ser a derradeira canção que irá embalá-los. Por vezes desejo nunca parar de cantar.
Sua respiração segue pesada, custosa. Seus olhos seguem brilhantes, pacíficos.
"Quando eu melhorar", a tosse o interrompe, "quando eu ficar bom iremos comemorar o fim desse inferno".
Acato com um sorriso, pois não sei mentir tão bem quanto ele.
E prossegue, "Eu quero te contar uma coisa, antes que eu me esqueça..."
Faz sinal para que me aproxime, e ouço sua voz fraca soar em meu ouvido.
"Espero que não seja cedo de mais para confessar que gosto de você."
Tal frase afundara ainda mais o que posso chamar de alma. Imploro, suplico à Vida que me permita infringir o curso natural da mesma.
Minha antagonista se manifesta ao meu lado, lançando-me um olhar de piedade. "Por favor, não quero levá-lo, não agora".
"Nem nunca, eu sei. Mas quantas vezes isso já deu errado? Eles estão fadados a lhe deixar, sofrerá em dobro no fim das contas". Acaricia-me os cabelos, ajoelhando-se a meu lado. "Dizer adeus é melhor que a rejeição."
"E se dessa vez for diferente?"
"Não há como saber. E nada do que eu disser lhe fará mudar de ideia. Sabe como me encontrar caso se arrependa."
Ela se vai e me deixa a sós com o enfermeiro. Ele enfraquece a cada suspiro, ainda estampando um sorriso enquanto aguarda hesitante a minha resposta.
Uma lágrima escorre por seu rosto, sinto sua mão afrouxar quase sem vida sob a minha. Tomo a decisão que mudará ambas as nossas histórias.
Talvez volte a contá-las algum dia.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Danse Macabre
Short StoryDurante a guerra, a Morte se interessa pela vida de um enfermeiro.