Tendência Suicida

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Foi encontrado desacordado em seu quarto, espumando uma gosma amarelada com traços de vermelho que bem poderia ser bile e sangue. Levaram-no às pressas para um hospital. Entre soluços, a irmã se lembrou de pegar a caixinha vazia de remédios. Na emergência foi cercado por médicos e enfermeiros e levado para uma daquelas saletas, ocultas aos olhares apreensivos dos familiares e escrutinadores dos curiosos, onde se desenrolam os momentos cruciais. Estava vivo, mas não parecia.

Aliviado, o médico veio informar que, após uma lavagem estomacal, muito soro e administração de dextrose e outros reagentes, conseguiu salvá-lo. A família pediu para vê-lo, uma enfermeira avisou que ele ainda dormia, estava em observação e talvez demorasse a despertar. Estava vivo, era o que importava.

Quando enfim acordou, foram encontrá-lo. Recebeu a todos com o mais duro olhar de desaprovação que conseguiu estampar em seu rosto combalido de quase-morto. O pai, lamuriento, questionava-o por quê. A mãe procurava agradá-lo, acarinhava o filho que - dizia ela - nascera de novo. O irmão, a um canto, por vezes sorumbático, espiava pela janela e fazia, de quando em vez, comentários irônicos para esconder o medo que a morte próxima do irmão lhe causara, ou para quebrar um pouco aquele clima de funeral. Estava vivo, afinal de contas.

Manteve-se taciturno. Olhava ao redor com um misto de raiva, desprezo e incredulidade. Quando resolveu se manifestar, a voz saiu roufenha, rasgada. Por causa dos tubos que lhe enfiaram pela garganta, demonstrou dor ao falar. Apesar disso, explicou suas razões: queria morrer porque era a única certeza na vida, a única garantia que tinha. Considerava o mundo um moedor de carne e a existência um poço de incertezas. Não sabia até quando viveria, qual seria sua carreira profissional ou, ao escolhê-la, se seria bem-sucedido. Não sabia se iria casar-se ou com quem, se teria filhos ou filhas ou quantos, se sobreviveria a seus pais, se seus filhos, caso os tivesse, sobreviveriam a ele. Não sabia de nada. Concluíra que tudo que o futuro oferecia era fruto da especulação, entremeada a vagas esperanças. E a esperança, considerava ele, era o refúgio dos impotentes. Enfim, concluiu, odiava a incerteza: causava-lhe angústia. Definir quando, onde e como iria morrer - e ainda assim tais decisões eram limitadas - era a única coisa a seu alcance. Tentou e foi interrompido. Estava vivo, mas que inferno!

Psicólogos vieram conversar com o rapaz para avaliar seu intento, explicar que a beleza da vida repousava justamente na incerteza, nas possibilidades, no não saber, nas surpresas do amanhã. Esses aspectos não eram uma prisão, longe disso: eram um horizonte infinito que ele poderia explorar como preferisse, conforme suas ambições, suas potencialidades. Mas ele não via beleza em nada disso, não queria mais participar desse joguinho estúpido. Via a existência como um cassino de cartas marcadas e crupiês desonestos. Fora trazido para cá contra sua vontade, agora pedia que fizessem a gentileza de deixá-lo abandonar o recinto. Além do mais, considerava profundamente desrespeitoso interromperem seu sono eterno. Impedi-lo de morrer simplesmente porque o queriam vivo era um gesto egoísta! E a opinião dele, não contava? Não tinha sido tomada em meio a um surto depressivo, um rompante de desespero ou insanidade. Fora pensada, analisada e calculada profunda e conscientemente. Estava vivo, era verdade, mas apenas por ora.

Foi considerado psicologicamente incapaz, "um perigo para si mesmo", dizia a ficha de internação do hospital psiquiátrico. Ou "casa de doidos", como costumava chamar, enquanto insistia que não era doido, pelo contrário: demonstrava perfeita sanidade. Querer morrer não era loucura. Se fosse, não haveria livros de Byron na biblioteca do lugar. Havia-os. Ele mesmo separara, para leitura, Sol dos Insones, Manfredo e uma antologia poética em inglês, mas seu médico - que não era um completo ignorante, embora parecesse - confiscou os volumes, dizendo que não era o momento mais indicado para tão soturna literatura. Também não permitiu que lesse Camus ou Dostoievski. Aparentemente a boa literatura não era indicada a pacientes em sua condição. Estava vivo e entediado.

A família ia visitá-lo com frequência. A mãe perguntava sobre sua rotina, o tratamento, os médicos. Conversava com enfermeiros e psiquiatras, caminhava pelo hospital. Comentava regularmente "É tranquilo aqui, né?", como se tentasse convencer a si mesma, mais do que aos outros, de que aquele era um bom lugar para seu filho. A irmã aparecia pouco, ocupada com suas frivolidades. Mandava sempre um beijo. Quando ia, mantinha-se ao celular, a cara grudada no smartphone, alheia a tudo. O irmão, por outro lado, ia sempre. Fazia planos, contava histórias, tinha sempre uma piadinha na manga. O pai, alquebrado e tristonho, afagava a mão do filho, olhava-o nos olhos, mantinha-se em silêncio. Quando falava, a voz vinha embargada. Terminava sempre perguntando o porquê. Recebia a mesma resposta. No fim das contas, ao menos saía satisfeito por vê-lo com saúde. Ele se aborrecia com aquelas pessoas ao redor, lembrava-se que a postura carola deles fora a responsável por sua situação, por não lograr êxito em sua partida definitiva. Estava vivo e rancoroso.

Ainda argumentava com os psicólogos, psiquiatras, psicoterapeutas, psicanalistas, enfermeiros e outros internos que não era louco, que só o mantinham ali por não se adequar a um padrão de pensamento moldado pelo conformismo, por negar as incertezas, por querer tomar as rédeas de sua existência de uma vez por todas. Mas falava para ninguém: não refutavam seus argumentos, tampouco lhe davam razão, apenas mais remédios. Passou a guardá-los em um saquinho plástico que mantinha escondido. Quando julgou ter o suficiente, ingeriu todos. Estava vivo, mas não por muito tempo.

Quase morreu. Mas, mais uma vez, foi salvo! A partir de então, a mãe desatava a chorar sempre que o via. A irmã tornou a aparecer, com uma postura de enfado e desaprovação. O irmão abandonou as piadinhas, limitou-se a ficar carrancudo. O pai, entretanto, mostrava-se furioso: não perguntava "por quê?", exigia saber! Ele já respondera inúmeras vezes, cansou de se repetir. Refugiou-se atrás de uma muralha de silêncio. Não falava com a família ou com os psicólogos, psiquiatras, psicanalistas, psicoterapeutas, enfermeiros ou com os doidos. Sentava-se mudo e permanecia imóvel até que alguém dissesse para ir a outro lugar fazer alguma coisa. Ia sem relutância, mas não fazia nada. Não assistia TV, não lia, não participava de dinâmicas ou das sessões de pintura. Sentia-se profundamente deprimido. Estava vivo e de saco cheio.

Um dia, tentou fugir. Estava tão apático que a vigilância sobre ele era quase nula, podia zanzar pela instituição como uma sombra à qual não davam importância. Aproveitou a oportunidade quando o guardinha que cuidava do portão distraiu-se ao procurar uma prancheta, deixando a saída escancarada. Enfermeiros saíram em seu encalço e conseguiram pegá-lo. Espantaram-se ao ver o paciente, até então catatônico, lutar como um bicho acuado. Por fim foi subjugado e ministraram-lhe Midazolam ou algum outro benzodiazepínico, única forma encontrada de acalmá-lo. A partir de então, mantinham-no amarrado à cama. Estava vivo e era um prisioneiro.

Sempre que um médico entrava no quarto, sempre que um enfermeiro ia alimentá-lo, sempre que um psicólogo, psicoterapeuta, psicanalista ou psiquiatra tentava falar com ele, sempre que a família o visitava, nada fazia além de se debater furiosamente, berrar obscenidades, tentar morder quem se aproximava e cuspir em quem estivesse perto o suficiente. Estava vivo e muito, muito puto com isso tudo.

Mantiveram-no cativo. Tornara-se, aos olhos de quem trabalhava no hospital, mais do que um louco: um louco furioso. Injetavam-lhe calmantes, antidepressivos, ansiolíticos, antipsicóticos. Alimentavam-no por um tubo (recusava-se a comer, apesar dos remédios para aumentar seu apetite) e, às vezes, se parecia agitado demais, sujeitavam-no a sessões de eletrochoque. Era um perigo para si e para os outros, agora, e os psicólogos, psicoterapeutas, psicanalistas e psiquiatras preocupavam-se com seu paciente. Queriam vê-lo curado, saudável, feliz e vivo. E estava vivo, mas cada vez menos consciente.

As sessões de eletrochoque e os remédios, por fim, surtiram efeito. A fúria arrefeceu até sumir. O tratamento o deixou complacente, tranquilo. A família pôde, finalmente, levá-lo para casa. Foi um dia de alegria, estavam todos exultantes. O pai, com seu coração de manteiga e os olhos vermelhos de tanto chorar, cercava o filho de atenção. A mãe tentou se lembrar das coisas que ele gostava, lotou a geladeira com suas gulodices favoritas. A irmã deixou de sair com o namorado para lhe receber, o irmão apresentou-lhe a namorada nova e estava amigável e bem-humorado. E ele ali, no sofá, com um copo de refrigerante nas mãos (um tanto trêmulas), cercado por todas aquelas pessoas e tentando se lembrar quem era quem, quem era ele antes de tudo começar. Sorria não por convicção, mas por reflexo, seus olhos inexpressivos fitavam algum lugar no infinito. Às vezes um fio de saliva escapava pelo canto da boca. Ele não se dava conta. Limpavam-no, com todo o carinho, sem reclamar. Plácido, inerte, apático, ele parecia feliz. Não parecia ser o mesmo. Mas, oras, que importância tinha isso?

Ele estava vivo.

O que deixava todos muito satisfeitos.

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