PRESENTE DE FERIADO..
Mérida- Primavera, Maio de 833 d.C.
Juan estava sentado em uma almofada confortável enquanto bebericava de uma taça de vinho e degustava de pedaços de carne de carneiro desfiada com legumes, dispostos em travessas na pequena mesa baixa, defronte aos convidados.
A viagem se mostrara mais interessante do que ele poderia imaginar. Os costumes dos árabes eram diferentes, mas não podia negar que as cidades e vilas eram mais limpas e organizadas, as casas eram brancas, pintadas com cal, havia bibliotecas e banhos públicos. As mulheres geralmente usavam mantos ou véus nos cabelos e os homens túnicas longas.
Com exceção da escassez de bebidas alcoólicas, em razão da proibição da religião islâmica, não tinha do que reclamar.
Foram recebidos por Abd al-Ŷabbãr, que os alojara em uma casa com vários quartos, próxima ao palácio, no interior dos muros da cidade. Surpreso, duas belas servas usando túnicas simples de algodão o esperavam ao lado de uma tina de ferro com água quente, obviamente prontas para ajudá-lo a se banhar. Ao contrário do hábito generalizado entre os cristãos de que não era necessário se banhar todos os dias, ele apreciava a sensação de limpeza que os banhos proporcionavam e, diariamente banhava-se no riacho de águas geladas e revigorantes próximo do castelo do Duque.
Depois, ele e o padre Paulus almoçaram em um pequeno salão, juntamente com os soldados da escolta e o moçárabe Abdul. Enquanto seus companheiros passaram o dia bebendo, pois o líder tribal providenciara vinho em abundância, Juan e Paulus percorreram a cidade, tendo como guia, Abdul, e foram até a casa do bispo de Mérida.
Surpreendentemente, a liberdade religiosa era a regra no emirado, cristãos, judeus e muçulmanos pareciam viver pacificamente, cada um com suas crenças, bem diferente do Reino das Astúrias e outros reinos cristãos onde as demais religiões eram combatidas com ferocidade e seus adeptos acusados de heresia.
Enquanto o padre se reunia com o bispo, Abdul levou o jovem para conhecer a cidade. Um rio cruzava por seu interior e havia um pequeno porto com docas, embarcações de pequeno calado subiam ou desciam pelo rio, carregados de produtos.
Juan sentou-se em um tamborete no interior de uma choupana, construída de barro e galhos, onde um árabe cristão vendia peixe frito e cerveja aguada, observando o vaivém dos trabalhadores e os pequenos barcos chegando e partindo.
Uma leve brisa soprava espalhando o odor de fritura e especiarias pelo local e Juan se sentiu em paz, a temperatura no sul era muito mais agradável do que no norte e viu-se livre da opressão constante de seu pai, que sempre que tinha a oportunidade o criticava por qualquer coisa.
Por isso aproveitou a tarde no local dedilhando seu alaúde que trouxera consigo de Luco de Ástures.
Ao retornarem, perto do crepúsculo, para pegarem Paulus na residência do bispo, foram avisados que no dia seguinte haveria um torneio e que eram convidados de Abd al-Ŷabbãr.
Juan perguntou ao padre o resultado da reunião.
— Iremos nos encontrar com Abd al-Ŷabbãr assim que ele nos convocar, o bispo participará da reunião – explicou sem entrar em detalhes.
A noite transcorreu pacificamente e Juan optou por se recolher cedo, recusando o convite dos mercenários para se juntar a eles em mais uma noite de bebedeira.
Ao alvorecer, o filho do líder tribal, Ibrahim, se apresentou para acompanhá-los até o local. O jovem possuía os cabelos e olhos negros, além da pele bronzeada dos berberes, o nariz ligeiramente arrebitado e longos cílios que lhe conferiam uma beleza quase feminina.
O torneio ocorreria em uma pista retangular com centenas de passos de largura e cumprimento. No lado norte havia vários tablados, sendo que o central era mais alto que os demais. Uma corda delimitava toda a pista, atrás dela, a população se espremia usando trajes coloridos e gritando animadamente, enquanto vendedores apregoavam as delícias de seus sucos de frutas.
O sol brilhava forte e Juan agradeceu pelo tablado ser coberto por uma tenda. Ele e Paulus foram levados por Ibrahim até seus lugares, ao lado do local reservado ao Emir e Abd al-Ŷabbãr, explicou ao jovem enquanto Juan traduzia para Paulus que, apesar de falar um pouco de árabe não possuía a fluência de seu pupilo, que aprendera a língua desde cedo com um servo.
— Serão disputadas provas de cavalaria, o objetivo é derrubar seu oponente da montaria – explicou Ibrahim.
Um arauto usando roupão com faixas horizontais coloridas e turbante na cabeça se aproximou e gritou um nome:
— Ŷamĩla bint Abd al-Ŷabbãr ibn Zãqila!
— Esse não é um nome feminino? – perguntou curioso para Ibrahim enquanto o arauto anunciava o nome do adversário dela.
— Sim – respondeu com indisfarçável orgulho — é minha irmã mais nova.
Juan traduziu para Paulus.
— Virgem Maria! Uma mulher! Onde já se viu! – exclamou horrorizado o padre.
— As mulheres em nosso reino não disputam torneios – explicou Juan para Ibrahim, que ficara curioso com a exclamação do padre.
— Aqui também não é costumeiro, mas descendemos de tribos berberes onde as mulheres, se quiserem, podem ser guerreiras, e meu pai faz todas as vontades de minha irmã, perdoando suas ações tresloucadas desde a infância. Agora ela é conhecida em todo emirado e até além – explicou dando de ombros como se aquilo fosse natural.
Juan observou atentamente a jovem, apesar do turbante e da túnica, tão brancas como o animal que montava, era claramente diferente de seu adversário, que parecia ter o dobro de tamanho.
Eles trotaram lentamente em direção ao tablado central, o jovem pode visualizar com clareza parte do rosto da guerreira, uma vez que o turbante descia pelo pescoço e cobria parte do nariz e totalmente os lábios, deixando à mostra apenas os olhos. Ele ficou surpreso, a jovem possuía pele bronzeada, mas o que mais lhe chamou a atenção foram os olhos, de um verde da cor do mar em um dia de sol.
Por um breve segundo ela o encarou fixando seu olhar no dele, o que estranhamente lhe causou um estremecimento no corpo. A força e beleza daquele olhar o abalaram.
Mas o momento foi breve e ela se virou para o Emir, cumprimentando-o e aos demais, erguendo a lança que estava em sua mão direita, assim como fez com seu adversário, montado em um animal castanho.
Em seguida ambos se afastaram, cada um para um lado, ela se posicionou defronte ao tablado em que Juan estava.
Por um momento ambos fizeram suas montarias rodarem em volta do próprio eixo então, com um grito alto e agudo, a jovem empinou sua montaria e quando as patas dianteiras tocaram o solo coberto de areia galopou velozmente.
Ambos os contendores se aproximaram, lanças apontadas para frente, escudos nos braços.
Os cavaleiros se cruzaram em meio aos gritos estrondosos da multidão, o choque foi violento, e o adversário da guerreira tombou da montaria, sua lança se partira no escudo da jovem, mas ela o acerta no peito.
Trotando, ela se aproximou novamente do tablado para cumprimentar o Emir. Depois se afastou, mas ao passar ao lado do local onde Juan estava lhe lançou um breve olhar.
Por um momento ele imaginou se haveria o esboço de um sorriso debaixo do turbante.
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A GUERREIRA INDOMÁVEL
Dragoste"O que acontece quando uma jovem guerreira se vê entre o amor e sua convicção?" Século IX d.C., a península ibérica dominada pelos árabes se vê envolta em fortes tensões sociais. Uma embaixada enviada pelo último rei cristão à Mérida tem o objetivo...