Capítulo sem título 34

127 26 9
                                    

Mérida- Outono, Outubro de 833 d.C.

Jamila chegara bem a tempo de ajudar na luta sob os muros, estivera em companhia de Brunilde e suas escudeiras na doca do rio e ouvira o tumulto da luta.

Ao chegar, percebera horrorizada que Juan estava lutando praticamente sozinho e estava quase dominado, por isso se lançara com furor na batalha, pensar que ele poderia morrer a fizera esquecer a própria segurança.

Como sempre, Brunilde e suas escudeiras avançaram corajosamente ao lado dela.

Quando a luta terminou, percebeu que Juan a encarava com olhar de adoração. Por Alá, pensou consigo mesma, feliz e preocupada ao mesmo tempo, ele devia disfarçar melhor seus sentimentos.

Passaram o restante do dia nas amuradas. O exército do Emir lançou mais dois ataques, o último deles, distante do ponto onde ela estava, o que a obrigou a correr para ajudar os defensores, uma vez que, liderados por um enorme guerreiro, as forças do Emir conseguiram dominar o passadiço, somente sendo expulsos, após um combate sangrento com grandes baixas para ambos os lados.

Decidira cear com os soldados junto aos muros, sua presença incutia moral nas tropas defensoras, dissera seu pai, embora Mahmud fosse contra sua presença entre os soldados, desde que o cerco começara.

Fogueiras foram acesas e carne de cordeiro foi espetada para assar. O clima, apesar do cerco era alegre, afinal, conseguiram repelir o maior ataque feito pelo exército do Emir desde que se iniciara a rebelião.

Ela se sentou perto de Juan, tendo Brunilde e suas escudeiras à sua volta, um guerreiro se aproximou com um oud e começou a dedilhar suas cordas. O jovem se levantou de repente e se aproximou do homem, conversaram rapidamente em voz baixa e ela viu que o guerreiro sorria de satisfação ao compreender o que Juan pedira, pois lhe entregou o instrumento.

Ele se aproximou da fogueira e começou a cantar em moçárabe, enquanto dedilhava uma música suave:

Boa senhora, cuja rica fama lhe faz jus

acima das mais valorosas, a meu ver.

Razão tens razão em me privar

de sua bela companhia e de sua amorosa visão

por não a ter feito saber

que a amei mil vezes mais que a mim?

Neste erro sempre me encontrarás,

pois não é algo que eu possa desfazer.

O belo semblante que costumáveis ter,

claro que foi, senhora, vão,

pois deveis saber que não posso renunciar-vos.

Melhor seria que nunca a tivésseis visto,

pois não posso vos ser indiferente,

tantos são o desgosto e o desejo que me assaltam

todas as vezes que me lembro de vós

e volto meus olhos para a vossa habitação.

Se disserdes que devo me desesperar

senhora, não sei qual será minha esperança.

Como me haveis feito renunciar a qualquer outro amor,

não vejo ninguém com quem deseje me deitar.

Mesmo sem qualquer promessa, convosco quero permanecer

e só depende de vós me fazer mal ou bem.

Considereis o que melhor vos convém,

pois não perguntar-vos-ei nada.

Assim, de boa vontade e com o coração leal e sincero

eu me entrego a vós, para vossas ordens obedecer.

Só não ordenais de vosso amor renunciar,

porque nunca, senhora, poderia fazê-lo.

E que não me tenhais por mentiroso,

porque faço isso, senhora, de boa-fé.

Nunca poderia desamar-vos, por nada,

nem outro fim vislumbro se não puder vos ter.

Por muito tempo podeis me desejar mal,

caso me odiais porque vos amo.

meu coração não teria esse poder.

Assim, senhora, estou incapacitado,

já que nenhuma outra alegria me mantém.

Saibais que se em vós não encontrar perdão e mercê,

vosso belo corpo pecará contra o Amor.

O Amor errou quando me inspirou o desejo

de vosso corpo gracioso, apetitoso, branco e delicado.

Sequer precisa fazer o que não estais acostumada.

Jamila sentiu seu corpo ferver como se estivesse dentro de uma fogueira, percebia o rosto arder e disfarçou colocando a caneca de água que tinha nas mãos nos lábios.

O olhar que Juan lhe lançava indicava que a canção era somente para ela, assim como ela fizera, quando dançara para ele pela primeira vez. Um fogo emanar de sua intimidade, como uma fornalha gerando calor para um grande palácio, e seu coração disparou no peito de emoção.

Quando ele terminou sob as felicitações dos rudes soldados presentes, sentou-se ao seu lado.

Disfarçadamente, aproveitando a túnica que escondia seus movimentos, encostou sua mão à dele, que estava pousada no tronco de árvore no qual se sentavam.

Imperceptivelmente, enquanto conversava com um guerreiro, ele segurou sua mão apertando-a gentilmente por debaixo do tecido, por um longo tempo, recusando-se a largá-la e ela não desejando que ele o fizesse.

Jamila olhou para as chamas, temerosa que seu olhar a traísse e condenasse a ambos, pois percebia o quanto amava e era amada e o quanto era perigoso tal sentimento.



O ud ou oud (em árabe: عود; transl.: ʿūd; em persa: بربط; barbat; em turco: ud ou ut; em grego: ούτι; em arménio: ուդ; em azeri: ud; em hebraico: עוד; ud) é um cordofone em forma de meia pera ou gota, similar ao alaúde, instrumento do qual se distingue sobretudo pela ausência de trastes. É comumente usado em música do Médio Oriente.

Por licença poética, embora a canção tenha sido escrita séculos depois do momento histórico narrado, utilizei a canção de Berenguer de Palou (c. 1160-1209). Berenguer de Palou foi da Catalunha, do condado de Rossilhão. Pobre cavaleiro foi, mas galhardo, instruído e bom em armas. Trovou bem canções, e cantou para Ermessena de Avinhão, esposa de Arnau de Avinhão, filho de Maria de Perelada.

A GUERREIRA INDOMÁVELOnde histórias criam vida. Descubra agora