Mérida – Outono, Outubro de 833 d.C.
A população de Mérida foi reunida na praça do grande mercado, soldados de infantaria do Emir circulavam pelo local, pesadamente armados. Um esquadrão de cavalaria cercava um largo tablado de vinte pés de altura que fora construído durante a noite, os cavaleiros portavam lanças e escudos.
Jamila, usando um manto com capuz escondendo o rosto, se esgueirou em meio à multidão, parecia um dia de festa, vendedores de refrescos e doces andavam oferecendo suas mercadorias expostas em tabuleiros de madeira que carregavam acima da cabeça.
Ela viera da doca, estivera escondida dentro de um barracão em que havia uma embarcação que Brunilde construíra com autorização do Sheik e de Yusuf, semanas antes. Era parecida com uma galera viking, mas bem menor, explicara a escudeira.
Juan insistira que tinham que partir antes que os espiões do Emir descobrissem sobre o barco, a escudeira, como sempre, dissera que faria o que Jamila ordenasse.
Yusuf, por sorte estava no barracão supervisionando os últimos ajustes no barco e escapara do cerco ao palácio, ele pessoalmente se disfarçara e fora espionar o local.
— Não consegui achar uma forma de entrar, o palácio está completamente tomado por tropas do Emir, encontrei um servo no mercado, consegui conversar rapidamente com ele, o Emir está detido em seus aposentos sob vigilância e incomunicável – explicou com tristeza.
— E Mahmud? – perguntara Jamila preocupada com o irmão mais velho.
— Ninguém sabe, fui até a casa da mulher com quem ele dorme, havia soldados no Emir no local, mas nenhum sinal dele.
Isso ocorrera quatro dias antes, Jamila quisera sair para procurar o irmão ou organizar um ataque ao palácio para libertar seu pai, mas Yusuf fora contra, embora suas escudeiras e Juan se oferecessem para ir.
— Vocês seriam massacrados, há arqueiros nos muros, soldados de infantaria e cavalaria dentro do palácio, não passariam sequer pelos portões — explicara.
Alguém traíra o Sheik e abrira os portões, Jamila jurara por Alá que não descansaria enquanto não soubesse quem fora o traidor e quando isso acontecesse, seja lá quem fosse, encontraria o fim de sua miserável vida pelas suas mão.
No dia anterior, arautos anunciaram que o Emir aplicaria justiça nessa manhã, por isso, antes que todos acordassem, ela se esgueirou e saiu em silêncio do barracão.
O sol estava quase no centro do céu e um vento seco e quente soprava.
De repente ela sentiu uma mão em seu ombro, ao se virar, ao mesmo tempo em que procurava o punhal escondido em uma faixa em volta de sua cintura, embaixo do manto, seus olhos encontraram o olhar de Juan.
O jovem a seguira e conseguira encontrá-la em meio à multidão, apesar de ela ter saído do barracão durante a madrugada, sem que ninguém percebesse.
— Jamila, você não devia ter saído sozinha – disse em voz baixa.
— Juan, preciso saber o que o Emir vai fazer com meu pai – respondeu aflita.
Antes que ele respondesse um murmúrio tomou conta da população reunida e foi aumentando de volume até se transformar em gritos enfurecidos.
A jovem olhou em direção ao tablado, vindo do lado sul da praça, soldados de infantaria abriam caminho em meio ao povo empurrando-os brutalmente.
No centro do corredor formado pelos soldados, cercado de mais guerreiros pesadamente armados, o Sheik Abd al-Ŷabbãr ben Zãqila, caminhava com passos lentos, sua túnica branca manchada de sangue.
— Pai – murmurou Jamila tentando avançar, mas a multidão compacta a impedia, assim como Juan que a abraçou pela cintura.
— Preciso ajudá-lo! – sibilou.
— É impossível, se eles a virem irão prendê-la também, não é isso que seu pai iria desejar – tentou convencê-la enquanto a segurava firmemente.
A multidão se aproximou ainda mais do tablado gritando impropérios contra os soldados do Emir, se Abd al-Ŷabbãr não estivesse tão bem vigiado os moradores de Mérida resgatariam seu Sheik.
Abd al-Ŷabbãr ben Zãqila subiu a escada que levava ao topo do tablado com passos vacilantes. Ao chegar olhou em volta e sorriu para a multidão, o vento fazia seus cabelos se enroscarem em seu rosto.
Um arauto se aproximou e abriu um pergaminho.
— Abd al-Ŷabbãr ben Zãqila, líder do clã Beni Tarif, você é condenado à morte por traição e rebelião contra seu legítimo governante, o Emir Abderramão II, suas propriedades, escravos e bens serão confiscados e entregues a Jamal al-Mahnub, seus filhos; Mahmud, Ibrahim e Jamila são considerados proscritos, devendo ser mortos por qualquer pessoa onde quer que se encontrem, a pena para seu crime é a morte! Sua cabeça será cortada e pendurada no muro da cidade! – anunciou com voz alta reverberando no silêncio que caiu sobre o mercado.
Jamila ficou muda de espanto, Jamal al-Mahnub era um comandante de confiança de seu pai, então fora ele que traíra o Sheik abrindo as portas para as tropas sitiantes, por isso ele não estava no jantar em comemoração à vitória de Juan sobre o guerreiro do Emir.
Como ele pudera praticar um ato tão abominável? Seu pai o criara quase como se fosse um filho.
Dois soldados se aproximaram e com violência fizeram-no se ajoelhar.
— Longa vida e liberdade ao clã Beni Tarif! Morte ao Emir! – gritou antes de ter sua cabeça curvada para frente.
Os presentes começaram a gritar em protesto.
— Não! – uivou Jamila em toda sua dor e revolta, seu grito se perdendo em meio ao alarido ensurdecedor da multidão, tentando se libertar para correr de encontro ao seu pai.
— Não olhe! – gritou Juan para se fazer ouvir em meio ao tumulto que explodiu na praça, abraçando-a e puxando-a para seu peito, enquanto ela se debatia socando-o.
Um soldado enorme portando uma cimitarra larga se aproximou erguendo-a acima da cabeça.
A multidão urrou de indignação tentando furar o bloqueio das tropas do Emir.
Jamila fechou os olhos e escondeu o rosto no peito de Juan que a abraçou com força.
A cimitarra desceu e o jovem viu a cabeça do Sheik rolar pelo tablado de madeira. Um soldado a agarrou e após mostrá-la à multidão, erguendo-a no alto, a espetou em um chuço.
A população de Mérida avançou gritando contra o tablado, mas os soldados armados de lanças e cimitarras fizeram uma carga contra eles brandindo as armas e desferindo golpes, dispersando assim a multidão para todos os lados.
Juan aproveitou a confusão e arrastou Jamila em direção ao porto, precisavam sair da cidade o mais rapidamente possível.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A GUERREIRA INDOMÁVEL
Storie d'amore"O que acontece quando uma jovem guerreira se vê entre o amor e sua convicção?" Século IX d.C., a península ibérica dominada pelos árabes se vê envolta em fortes tensões sociais. Uma embaixada enviada pelo último rei cristão à Mérida tem o objetivo...