NA PRAÇA DOS IDOSOS

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O relógio marcava as dez horas da manhã. O céu estava aberto e o sol já se fazia notar imperiosamente. Os carros trafegavam fluentemente e os peões circulavam para lá e para cá numa velocidade que tonteava todos quantos apenas neles prestavam atenção. Os iacistas lutavam bravamente uns para com os outros, na buzina, na ânsia de mais um passageiro. Assomada, Santiago, São Domingos, Tarrafal, Praia Baixo, São Felipe, Ribeirão Chiqueiro, Rui Vaz, Ponta D´Água, e muitos outros lugares eram mencionados pelos ajudantes. No meio dos peões trafegavam também agentes da guarda municipal da Praia, que por entre trampos e barrancos faziam impor a ordem nas ruas, correndo desenfreadamente atrás dos rabidantes que nos passeios ostentam suas montras à procura do sustento para os seus prodigiosos descendentes.
Bem no meio da praça dos idosos, situada ao lado da Igreja Nova Apostólica e na zona traseira da Caixa Económica de Cabo Verde, na Fazenda, encontrava-se um sujeito jovial, de cara fechada, sentando num dos velhos e despedaçados bancos. Seu olhar tristonho fazia transparecer alguma preocupação que lhe vinha na alma. Ao seu redor, uma legião de idosos reformados botavam a conversa em dia. A conversa girava ao redor das eleições legislativas de vinte de Março, ganho pelo Ulisses Correia e Silva do partido Movimento para a Democracia (MPD), da proximidade das eleições autárquicas e presidenciais, bem como do mercado de transferência nos campeonatos europeus de clubes de futebol. Entre uma e outra prosa, entre um e outro dedo de conversas, lá se iam dois ou três compadres em direcção ao quiosque, situado a uns escassos media dúzia de três ou quatro metros, a fim de tomar umas pingas.
O sujeito, de nome Beco, permanecia ali estático. O sorriso em momento algum habitava sua cara, e nas raras vezes que virava sua cabeça, não o fazia mais do que noventa graus tanto para um lado quanto para outro. Queria ele nada mais do que algo para quebrar o jejum. Era seu primeiro dia de liberdade. Tinha passado a noite ali mesmo, ao pé da Igreja Nova Apostólica. A noite porém não foi bem dormida. Além do vaivém dos carros na avenida, um mar de pensamentos o impedia de ter uma boa noite de sono. Madrugada dentro, estava ainda de olhos abertos. As preocupações eram imensas e o sono desejado não vinha. No seu bolso tinha nada mais, nada menos do que um monte de nada e coisa alguma. Mas apesar disso, as necessidades do corpo não o entendia. A fome era do tamanho da vontade de comer.
Momentos volvidos, Beco ergueu-se e pôs-se a andar. De cabiz baixo, olhar tristonho e sereno, passos lentos e dolorosos, começou a vagabundear Fazenda abaixo. Caminhou pelos estreitos corredores da Sucupira, onde de quando em vez vinha até si aquele aroma apetitoso de cachupa guisada, ovo frito, linguiça de porco e café com leite. Pior que passar a fome era a tortura que passara por suportar tamanha tentação. Tentava desviar seus sentidos para as múltiplas estantes onde estavam em montras sapatos caríssimos, relógios, cordões de ouro, mas, não adiantava. Foi cruel, mas o menino suportou. Minutos depois, Beco saiu do outro lado da Sucupira. Aproximou-se timidamente de uma das muitas barracas onde se vende a comida e pediu a uma senhora, ainda jovem, que lhe desse algo para matar a fome. Apesar de saber de antemão que não recebera, fê-lo na mesma. Uma coisa tinha ele a certeza: embora a fome cavava cada vez mais o seu túmulo, roubar era algo que não iria fazer. Para a sua surpresa, a senhora mandou-o sentar e, instante depois, ofereceu-o um prato com cachupa, ovo estrelado, e no lugar de linguiça, um bom pedaço de carne. A sua surpresa era do tamanho da vontade de comer. Simplesmente raspou o prato. Quando terminado, entregou o prato, fez um gesto com a cabeça em sinal de gratidão (pois a boca ainda estava mastigando, e ele bem sabia que de boca cheia não se deve falar) e pôs-se novamente a caminhar. O que ele não sabia era de que a comida que acabara de quebrar seu jejum veio das sobras dos vários clientes que anteriormente ali tinham frequentado. Mas como diz o ditado popular, o que o olho não vê o coração não sente. E o seu olho nada daquilo teria visto. E ainda que visse. Era capaz que apreciasse ainda mais.

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