Katia S. Parente
Conexão por água abaixo
Katia S. Parente
Foi em uma terça-feira que tudo começou a desacelerar. As pessoas foram recomendadas que ficassem em casa, pois um vírus devastador fora trazido de fora e estava se proliferando rapidamente. Em outros países muitos morreram e outros tantos estavam internados. Meus pais no início, não levaram muito a sério, confesso que nem eu mesma, mas depois de prestar atenção às noticias, vi que era algo preocupante.
Meu pai parou de trabalhar e minha mãe fez uma compra grande de mercado para abastecer a casa. Também parei de sair e continuei em casa escrevendo e lendo. Adeus café da tarde na padaria. Difícil lidar com isso, afinal a maioria das pessoas que tem alguma experiência com períodos de guerra, ou já morreram ou estão internadas.
Viciada em redes sociais pelo celular, eu recebia a cada momento uma novidade. O presidente falou, depois "desfalou", governador que quer ser presidente tomava decisões por conta própria, ministros perdidos na ciência e jornais que dão notícias que ninguém mais sabe se é verdade. A confusão foi geral.
O que de fato foi novidade era a orientação para não sair de casa, seguida de uma portaria que proibia a abertura do comércio, portanto todas as lojas fechadas, inclusive shoppings. Este é o novo estilo de vida dos brasileiros, mais conectados do que nunca na história e mais distantes que em qualquer fase da vida.
O jeito foi apelar para a vida on-line, tudo conectado no celular. Até que não estava difícil, afinal já era habituada a usar o aparelho para tudo, quase como um membro do corpo.
Certo dia, acabou o pão.
"Caramba, como vou ficar sem pão? Minhas torradas pela manhã e meu lanche à noite?"
Os frios também tinham acabado, então me equipei com todos os EPIs que possuía: máscara, luvas e álcool gel na bolsinha a tiracolo. Lá fui eu para a batalha, com o celular sempre ao meu lado. Na verdade, desta vez no bolso de trás da calça.
Apertei o botão do elevador com a chave, empurrei com o cotovelo a porta para sair. Seria difícil coçar o rosto com o cotovelo, de modo que me achei segura.
Fui à padaria parecendo um ET, nem enxergava direito com aquela máscara na minha frente, mas venci o desafio e fiz minhas compras. Na volta a mesma coisa, exceto pelo fato que precisei usar a mão para abrir a porta do elevador e entrar, então fiquei parada no meio da caixa de aço escovado, sem encostar em nada. Penso que o vírus não voa, nem pula, por isso não achei que seria infectada pelas paredes do elevador, a menos que eu ficasse me esfregando nelas. O que não foi o caso.
Sem colocar a mão supostamente infectada em nenhuma parte do meu corpo, fiquei ali imóvel, aguardando o velho maquinário me levar ao vigésimo andar.
Uma coceira irritando o nariz começou. Uma das mãos ocupada com a sacola das compras, a outra supostamente infectada. Não tinha como me coçar.
O elevador estava ainda no quinto andar.
"Jesus! Que elevador lento! Nunca reparei como demora esta viagem."
Décimo andar. Continuava coçando, agora mais intensamente, uma coceirinha dentro do nariz, não era mais na ponta, insistia em permanecer.
Décimo quinto andar. O elevador parou e uma senhora de bastante idade abriu a porta. Na mesma hora espirrei.
"Nossa!!! Meu Deus!" exclamou a senhora assustada. "Você não devia circular por aí! Deve estar infectada!"
E com a cara emburrada fechou a porta do elevador.
"Gente, tô de máscara. E ela pensava ir onde, com aquela idade?" Ao menos minha coceira havia parado.
Depois da viagem de elevador mais longa da minha vida, cheguei ao meu andar. Desci e fiquei parada na frente da porta de casa. A chave também contaminada, pois a usei para apertar o botão do número vinte, já estava na minha mão.
Abri a porta do apartamento e empurrei com a perna para fechar. Em seguida larguei a sacola sobre a pia da cozinha e fui direto para a área de serviço, onde lavei bem as mãos e a chave no tanque, em seguida tirei toda minha roupa, jogando tudo dentro da máquina de lavar. Já coloquei para funcionar e fui tomar banho.
Após sair cheirosa e desinfetada do banheiro, limpei as compras e guardei tudo, indo direto para o celular ver as últimas notícias.
"Onde está o celular?"
Procurei pela casa toda e não achei.
"Essa não! Será que perdi na rua? Não é possível."
O telefone fixo eu havia desativado, pois não usava mais, então nem tinha como ligar para ouvir o toque e fazer a caçada pela casa. Fiquei parada no centro da sala, pensando onde poderia ter deixado o aparelho. Após alguns minutos veio a imagem. Meu celular estava no bolso de trás da calça que agora era lavada na máquina.
Saí em disparada para a área de serviço, abri a tampa da máquina e comecei e fuçar lá dentro. Não demorou nada para eu encontrar meu querido aparelho no fundo da máquina de lavar roupa. Bem limpinho, lavado, desinfetado e desligado.
"Não!! Por favor, não!"
Sequei com o secador de cabelo, deixei no sol, dormiu no arroz. Nada.
Dois dias depois eu estava em pânico. As lojas todas fechadas e eu sem celular.
Todas as cenas possíveis passaram em minha cabeça, eu sozinha, incomunicável, sem telefone. Como iria sobreviver sem telefone, sem Face e Instagram, sem WhatsApp???
Liguei o computador. Ok. Ao menos as redes sociais podia ver ali, mas e as mensagens? Podia comprar outro celular pela internet, mas o chip também foi por água abaixo. Precisaria ir até a operadora fazer todo o processo para manter meu número e usar os pontos na compra do aparelho novo. Desisti da compra pela internet.
Depois de quase a semana inteira só me comunicando por e-mail, uma sensação estranha tomou conta de mim. Descobri que tinha alguns livros na estante que não havia lido, assim como programas de televisão nos diversos canais que eu pagava e nem sabia que existia. Li alguns livros (muito bons inclusive), assisti a filmes interessantes e documentários de viagens, vinhos e gastronomia.
De forma inusitada, eu não precisava mais do celular. Ao menos não como antes, viciada em mensagens desnecessárias.
A quarentena serviu como uma desintoxicação. Eu estava curada.
Quero dizer, ao menos até abrirem as lojas!

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Conexão por água abaixo
Short StoryUm texto que trata da pandemia e da quarentena de forma divertida, sem deixar de lado algumas reflexões interessantes.