Saindo do banheiro, Maria se depara com uma figura sisuda, intimidadora, com os cabelos amarrados, que formam um curto rabo de cavalo, com a pele bem clara, cheia de sardas, bastante alta, beira aproximadamente um metro e oitenta, exala um cheiro forte de lavanda, com o corpo atlético, denunciado pelos braços fortes que esticam as mangas da camisa branca que vestia.
Mesmo com sua baixa estatura, que a fez se sentir um “David ante Golias”, acentuada ainda mais pela curvatura de suas costas, não se dá por intimidada. Enche os pulmões de ar e com um olhar penetrante e desafiador, porém educadamente, pergunta quem era ela e o que ela estaria fazendo em seu quarto, sem a sua autorização.
– Boa tarde Maria, hoje sou eu que vou ficar responsável por você. – Responde a mulher com o olhar cuidadoso, com uma das mãos no bolso e recuando para a entrada do quarto, enquanto Maria passa lentamente em frente à sua cama.
– Não sei por que eu ainda perguntei. Veste-se igual e ainda trata as pessoas pelo primeiro nome sem nem sequer conhecer. Vocês tem uma educação de um búfalo. Mas diga menina de calçado estranho, o que deseja ao invadir a minha privacidade e ainda faltar com respeito?
– Bem, eu vim aqui pra te levar até o refeitório. – diz com uma voz robótica.
– Sala de jantar. É o que está se referindo.
– Que seja. Deixaram ordens para que eu te acompanhasse até lá.
– Você é nova aqui?... Não precisa responder, tenho certeza que sim. Toda essa postura e firmeza na voz me lembra muito de minha nora Ana, quando a conheci. E essa mão dentro do bolso? Vai me dizer que é a chave do carro também?
Completamente sem jeito, pela leitura que Maria fez dela, ela pede para que ela a acompanhe.
– Menina. Quando se chega à minha idade, a rapidez fica em um plano que não alcançamos mais. Se não queria que eu chegasse atrasada no almoço, chegasse mais cedo. Vou pegar minha bengala, que minhas pernas estão bastante cansadas hoje.
– Mas aqui no prontuário diz que a senhora te...
– Não acredite em tudo que o prontuário diz. Logo vai perceber o quanto eles mentem descaradamente.
Ao olhar Maria voltar se apoiando. Ela questiona como permitiram que ela permanecesse com aquilo em seu quarto.
– Eu Maria, a matriarca dessa casa, na qual você trabalha. Quem tem que permitir algo ou não sou eu, meu filho e minha nora. A propósito, como se chama?... – Tão ingênua você Miriam. Podemos ir, estou pronta. Esta bengala é meu equilíbrio menina, sem ela eu caio, literalmente. Contava ela num tom de piada. – No mais, essa bengala além de linda, tem muita história. Até te contaria, se você não estivesse sendo tão antipática.
Miriam se afasta para que ela passe a frente, enquanto ela vai uns passos mais atrás, na diagonal à sua direita. Ouvindo Maria tagarelar coisas sem sentido, por ela estar falando muito baixo e estar uns passos à frente, porém não faz nenhum esforço para tentar ouvir, ou curiosidade para perguntar sobre o que ela estava falando. Descem a escadaria lentamente, porém no ritmo que era impresso por Maria, que ao chegar ao final da descida, agradece debochadamente por sua cortesia em ajudá-la. A enfermeira em riste parecia não ligar para o que ela diz, apenas aguarda, para que ela continue a caminhada até o refeitório. – A saudade da minha nora já pulsa em meu peito. Complementa.
Chegando ao refeitório, Maria avista em uma mesa isolada, no canto esquerdo, as amigas com quem tinha parado para tentar conversar alguns dias atrás, caminha até lá, decidida que era naquela mesa que se sentaria.
Aproxima-se da mesa, cumprimentando todas e pede licença para se sentar. Fica de pé um tempo, aguardando para que a enfermeira puxe a cadeira, mas foi tempo perdido, da forma que ela estava, ficou. Assim que Maria senta, ela dá um giro robotizado, de cento e oitenta graus, anunciando que voltaria com a refeição.
– Ela é nova aqui. – Exclama a menor de todas, de membros curtos, cujas palavras saiam de sua boca tão rápido, que só se entendia o que ela queria dizer, com bastante atenção.
– Percebi. – Responde Maria, evitando olhar para ela, para que suas memorias não a constrangessem mais uma vez. – Ana a deixou de olho em mim, onde já se viu. Como se eu fosse sair correndo, da minha própria casa.
– Ela está voltando. – Comenta a da esquerda, de rosto fino com os cabelos voltados para cima, com uma voz trêmula e encolhendo os ombros.
– Sério que você esta com medo dela? – Pergunta Maria e completa. – Você só é mais magra, mas tem o mesmo tamanho dela, não abaixe a cabeça.
– Não adianta falar, ela tem medo até do espirro dela. – Disse a de cabelos coloridos, com o semblante apático e inexpressivo.
Todas se calaram com a aproximação da mais nova enfermeira.
Parecendo marchar, ela chega com a bandeja na mão, com uma cara de poucos amigos e a coloca na frente de Maria, para que ela possa começar comer. Maria olhando a quantidade de comida na bandeja pensa se suas netas já haviam se alimentado e pergunta para Miriam, carinhosamente, se já tivera dado comida a elas. De forma seca, ela responde que tudo que estava dentro do quarto, havia sido retirado e guardado, assim que ela saiu.
– Menina, sua arrogância já esta passando dos limites. – Diz ela rangendo os dentes, enquanto se virava para a enfermeira. – faltou com respeito comigo, uma senhora, eu relevei. Mas agora, vem tratar minhas netas, como se fossem objetos. Apoia-se na cadeira fazendo menção de que iria se levantar.
Miriam, dando um passo para trás, leva a mão ao bolso e de forma enérgica e pede para que Maria continue sentada. A de rosto fino se encolhe tanto que quase atinge o tamanho da de braços curtos, que por sua vez tenta estica-los o máximo possível, na tentativa de proteger sua bandeja, e a de cabelos coloridos, acompanha tudo somente com os olhos, sem nenhuma reação. Nesse momento, todos da sala pararam o que estavam fazendo, para observar o desfecho daquela contenda, enquanto a voz estridente de Maria ecoava pelos corredores.
Em instantes, seu semblante já era outro, calmamente, transparecendo um pouco de vergonha, se acomoda na cadeira e deita seus braços sobre suas pernas. Uma voz firme, porém suave e calma, reverberava por trás dos ombros de Miriam pedindo para que ela tirasse a mão do bolso. Ela reluta um pouco até ver quem estava falando. Só então retira a mão do bolso.
– Olá! Dona Maria, senhoras. – O que está acontecendo por aqui? Ouvi a voz alta da senhora. – Pergunta o homem, de uma forma muito simpática.
– Meu filho que saudade! – Exclama Maria tentando se levantar. Mas desiste quando foi friamente advertida pelo Dr. Luiz. – essa daí, está o dia inteiro sendo rude comigo, me tratando como se eu fosse uma serviçal qualquer. – nada contra vocês. Gosto muito de vocês, fazem um trabalho excelente aqui em casa. – Diz ela apontando para as companheiras de mesa. – E ainda se desfez das minhas netas.
– Isso é verdade Miriam?
– Mas, são...
Interrompendo, Dr. Luiz, a pergunta se leu as observações do prontuário dela.
– Sim doutor. Começando a narrar os dados. – Nome completo: Maria de Albuquerque e Albuquerque M. – Não! Diz ele tentando interromper. – Idade. Continua ela, quando o Doutor puxa o celular, que continha as informações, da mão dela. – Eu tinha dito observações. – Diz ele com uma aparente calma, mas com um olhar, que parecia querer queima-la viva. – Vá pra minha sala, por favor, que conversaremos lá.
Miriam não espera um segundo a mais, depois do pedido, dá mais um giro de cento e oitenta graus e rapidamente sai do refeitório. Dando para ouvir suas passadas tensas ao longe. Colocando a mão no ombro direito de Maria, enquanto ela ataca a comida, evitando olhar para aquela situação embaraçosa envolvendo Miriam. Dr. Luiz diz ter uma boa notícia para dar. Ela levanta um pouco a cabeça, com um olhar brilhando de curiosidade, aguardando ele dizer do que se trata. Já que não poderia perguntar, por ainda estar com a boca repleta de comida.
– A partir de hoje, nos veremos mais vezes, pra ser mais exato, duas vezes na semana. O que acha? – Pergunta ele com um sorriso simpático.
– Ainda tem a ousadia de perguntar? Eu acho ótimo. – Responde com um sorriso, há muito tempo não visto, que foge rapidamente, dando lugar para um semblante de preocupação. – Algum problema no trabalho meu filho?
– Vamos colocar dessa forma. A senhora está precisando de mais atenção da minha parte.
Maria fica corada, com a declaração do Dr. Luiz, mas, já com a boca vazia, tentou dizer algumas palavras, ele a corta e completa. – Agora me deixe ir, que preciso conversar com a enfermeira Miriam.
Ao virar as costas e partir, Maria revela a suas amigas que possivelmente seu filho a esteja perdoando, pela culpa que a atribui, por não ter crescido com um pai presente.
– Esse teu filho é um pedaço de mau caminho. – Diz a amiga de cabelos esvoaçantes. Cheia de coragem.
– Sim, mas é muito bem casado, pode tirando seu cavalinho da chuva. Pra isso você tem coragem? – Retruca Maria cheia de ciúmes.
– E como não teria?
Sem dar muito espaço para Maria poder responder, a outra complementa.
– Por baixo daquele terno e por trás daqueles óculos o paraíso é certo... Todo grande. – Diz a linda de membros curtos.
– Tão grande que dá dois de você. Logo como dizem no seu meio, é muita areia pro seu... No seu caso um fusca. – E você cabelo de fogo, tem alguma observação maliciosa para proferir também?
– Eu o acho muito feio! ... Uma mistura. Meio índio, meio europeu, meio africano... Sei lá. Não curto essa miscigenação. – Falando sem nenhum ânimo.
– A senhora tem a ousadia de chamar meu filho de feio. Eu só não te demito, porque com certeza não tem um padrão de beleza para se guiar em seu âmbito familiar. Olha a desalmada chegando ali, graças a deus que ela está vindo, pra me tirar de perto de você. – Com licença as outras amigas. – Miriam ainda bem que você chegou, já não aguento mais essa criada petulante falando nos meus ouvidos, me acompanhe até meu quarto? Pede ela, enquanto gesticula em direção à mesa, com as pernas tremendo de nervosismo, enquanto seu corpo curvado se apoia em sua bengala, que marca um ritmo desconhecido, com suas batidas no chão. Até ouvir a resposta da enfermeira.
– Claro senhora.
Naquele momento, toda a irritação, pela opinião sobre a beleza de seu filho, os tremores e até as batidas sem ritmo da sua bengala cessaram. Sobrando apenas a ironia, que teimava em ficar.
– Vejo que seus hábitos mudaram. Afirma num tom irônico. – Como eu te disse menina ingênua, não leve tão a risca essa papelada. Acredite no que eu te digo que vai ganhar muitos pontos com meu filho, assim como Ana. Só não vale roubar o marido dela. – Disse ela com um enorme sorriso sarcástico.
Miriam tentando mudar sua postura mostra timidamente os dentes, com um sorriso insosso, oferece seu braço para que ela possa apoiar até o elevador.
– Olha quanta cortesia! – Exclama ela com um olhar falso de espanto. – Regra número um, disse ela com o olhar sério. Nunca toque no meu braço esquerdo. Esta vendo essa queimadura? – Miriam olha para o braço. – Pois bem apesar de cicatrizada, ainda queima, sem falar que esteticamente é feio. – Outra situação que me deixa bastante irritada é o fato de entrarem no meu quarto se bater. Uma pela falta de educação e outra por isso.
Miriam aguarda, para que ela fale mais.
– Esta é a primeira e ultima vez que te mostro meu rosto deformado. Não gosto de ficar exibindo minhas chagas, não me sinto nem um pouco a vontade.
– Mas a senhora é bonita, diria até que tem o rosto bem jovial.
Colocando sua mão esquerda sobre a mão dela, ela diz. – Menina no início você me lembrou duma pessoa na qual eu passei a odiar. Mas que bom que agora tudo mudou. – Disse ela de uma forma sinceramente simpática.
Chegando à porta do quarto, Miriam pergunta se ela consegue se preparar para dormir, sozinha.
– Menina. Sou velha, lenta, mas não sou aleijada... Ainda! – Diz ela sorrindo.
– Que bom saber. Então enquanto a senhora se arruma, vou lá pegar seus remédios e já volto.
Sentada na cama, Maria se pergunta, em voz alta, como uma mulher bonita e altiva pode permitir que tanta coisa aconteça bem embaixo de seu nariz, bem dentro da sua casa.
– Dona Maria. Aqui estão seus remédios. – Disse Miriam ao se anunciar na porta.
A enfermeira entra segurando com ambas as mãos, uma bandeja prateada com um aparelho de verificar a pressão, que Maria conhecia de longe, o anão e o gigante. Apelido que ela deu aos copos, de agua o grande e o pequeno de remédios.
– Não precisa fingir que não me ouviu falando sozinha. – Diz ela enquanto estica a mão para pegar o anão e levar o mesmo à boca com seus quatro comprimidos. – É que às vezes converso com meus botões. Principalmente quando são lembranças problemáticas, de um passado muito distante. Até porque, ninguém gosta de ouvir história velha de gente velha. – Diz ela sorrido enquanto sorvia a água, para colocar os remédios para dentro. – Lembra-se de quando te falei que você me lembrava de alguém, então, é exatamente a lembrança desta pessoa, que começou a rondar meus pensamentos.
– Então é melhor a senhora tentar desviar esses pensamentos, pra tentar ter uma noite de sono tranquila.
– Minha filha, depois que comecei a tomar esses remédios, nenhuma noite tem sido tranquila. - Fala enquanto cede seu braço, para que Miriam possa aferir a pressão. – É cada pesadelo, que é um pior que outro.
– Sério? – Pergunta Miriam curiosa.
– E tem mais minha filha, tenho até alucinações, vejo coisas mesmo quando estou acordada. Assusto-me às vezes, mas até tô me acostumando com ela.
– O Dr. Luiz sabe disso?
– Meu filho? Sabe só dos pesadelos. Tenho medo de falar pra ele e achar que sua mãe está caduca. Vai que ele me interna numa dessas instituições para velhas carcomidas. – Diz ela soltando um longo bocejo. – É!... Os remédios já estão fazendo efeito. Deixe eu me acomodar.
– Tudo bem dona Maria, vou deixar à senhora dormir. Boa noite.
Já grogue com o efeito do coquetel de remédios, ela se despede, trocando o nome da enfermeira com o da sua tia, que assombrava suas lembranças. Miriam nem sequer ouve, caminha em direção à saída, pensando que O Dr. Luiz tinha plena razão na conversa que tivera com ela, naquele início de noite e tranca a porta.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Maria
RandomQuando a promessa é quebrada e as consequências são extremas, tudo se caótico.