São Paulo, 04 de março de 2020.
Caio acaba de entrar em seu prédio, já passava das 20h e ele tinha passado por um dia exaustivo. No jornal em que trabalha a ameaça do tal vírus que começa a se espalhar pelo mundo todo preocupa e só se fala nisso. Em seus doze anos como repórter, nunca tinha visto isso acontecer. Aperta o botão do elevador e logo nota que o mesmo encontra-se parado no 18o. andar. Enquanto aguarda fuça a timeline do seu Twitter e entre pessoas comentando sobre a eliminação do Gui no BBB e o espantoso aumento de casos do coronavírus na Itália, acaba tentando se distrair vendo memes e piadas. Está rindo descontroladamente de algo, quando encosta ao seu lado um rosto familiar de um sujeito magro, cabelo nos ombros, barba rala e óculos de aros grossos, via esse rosto quase diariamente. Ele não tem ideia, ou já esqueceu qual é o nome do rapaz, mas sabe que é seu vizinho de andar. Faz um aceno que fica entre o cordial e o desconcertado enquanto guarda o celular no bolso e confere onde está o elevador.
Seu vizinho olha para ele verdadeiramente curioso, afinal de contas, devia ser algo hilário no telefone. O cabeludo retribui o aceno e da mesma forma foca toda sua atenção no placar eletrônico do elevador, que agora está estacionado no sexto andar e começa a fazer sua contagem regressiva, até que finalmente se abre e começa aquela troca de gentilezas para decidir quem vai embarcar primeiro. Tudo é resolvido em dois ou três segundos bem confusos que são encerrados com um "valeu!" e um "opa, que isso!". Caio evita olhar para o colega. Ainda guarda uma mágoa imensa de uma certa festa que durou até seis e meia da manhã no apartamento do cabeludo. Naquela ocasião ele precisava acordar cedo para fazer um exame e praticamente teve de pular a recomendação de ter uma boa noite de sono. Xingou mentalmente a família cabeluda inteira de tudo quanto foi nome, isso quando não estava ligando pelo interfone para ver se o cara se tocava. Foi em vão. Caio se considera um cara na dele, de boa e evita confusões. Quase fugiu da sua própria regra naquela madrugada. É verdade que já faz um bom tempo. Mas desde então, se tem alguém que ele acha um otário, é esse cabeludo.
Chegam ao quarto andar, ambos descem e Caio corre pro seu apartamento. Resmunga algo parecido com uma despedida educada, mas na sua mente era um "vá se lascar, desgraçado". O cabeludo não responde nada em troca e, óbvio, que isso gera uma leve revolta. Em tréplica, Caio bate a porta e no conforto do seu lar, diz "pra você também, viu?".
Jairo entra no seu apartamento, tira os fones de ouvido sem fio, encontra um prendedor de cabelos no aparador, amarra uma espécie de coque e pensa: "rapaz, a porta da casa desse baixinho ainda vai cair. Esse maluco é estressadão". Deixando a mochila numa cadeira e vai até o quarto para trocar de roupa e fica lembrando da vez em que o vizinho, que ele não sabe o nome, mas tem uma antipatia gratuita, correu pra entrar no elevador quando o viu chegando. Mas ele não liga, também não vai com a cara dele. Desde sempre. Jairo adora animais, mas pega um pouco de pilha toda vez que chega em casa e sente o cheiro do xixi de gato, sabe que é do vizinho, mas nem adianta reclamar, vai arrumar treta com esse estressadinho pra quê?
Jairo se senta na cama, pega o violão, tira da mochila umas anotações e começa a trabalhar. Precisa compor essa melodia até o final da semana, antes que a produtora onde trabalha comece a cobrar a entrega do material para o comercial. Ele detesta trabalhar com publicidade, mas foi uma grana boa, ajuda a sustentar o trabalho dele na noite, ainda em busca de colocar a banda dele no mapa das maiores bandas de São Paulo. Dedilha um acorde aqui, outro ali e vê que a coisa não anda, se encosta na janela e começa a fumar um cigarro enquanto estuda a partitura e tenta encontrar o que há de errado. Mal dá a primeira baforada e escuta a persiana do apartamento ao lado se bater com força ao ser fechada.
Caio digita no celular: "porra velho, tô aqui comendo um lanche vendo TV e esse puta cheiro de cigarro. todo dia isso vtnc", ele então se senta novamente e continua assistindo ao jornal para tentar se atualizar. Seu editor pediu a ele uma matéria imensa sobre o que anda rolando na saúde pública do país para entrar no ar amanhã. Faz anotações, busca um termo na internet, anota referências e vai criando mentalmente os pontos principais da matéria.
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Aquarentenados - Ep 01 - Vizinhos
Short StoryDois vizinhos que nunca se falaram e mesmo assim não se gostam, terão a oportunidade de se conhecerem melhor durante a pandemia.