A GAROTA ESTÁ diante de um precipício rochoso, os dedos dos pés curvados sobre a beirada. Um abismo escuro se abre à frente, e alguns seixos rolam sob seus pés e caem, desaparecendo lá no fundo, em meio às sombras.
Antes havia algo ali, uma torre, ou talvez um templo — a garota não lembra exatamente o quê. Ela olha para o buraco sem fundo e, de alguma forma, sabe que aquele lugar um dia já foi importante. Um lugar seguro.
Um santuário.
Ela quer se afastar do declive íngreme. É perigoso ficar ali, de frente para o nada. Ainda assim, não consegue se mover. Seus pés estão grudados no chão. Ela sente o solo rochoso cedendo e ruindo. O buraco está aumentando. Em pouco tempo, a beirada onde se equilibra vai desmoronar e ela cairá, engolida pela escuridão.
Seria mesmo algo ruim?
Sua cabeça dói. É uma dor distante, quase como se fosse em outra pessoa. Começa como um latejar fraco na testa, passa pelas têmporas e desce em direção à mandíbula. A menina imagina o crânio como um ovo rachando, as fissuras na casca se espalhando por toda a superfície. Esfrega o rosto e tenta se concentrar.
Ela se lembra vagamente de ter sido jogada no terreno rochoso. Várias e várias vezes, balançada pelo tornozelo por uma força poderosa demais para ser repelida, a cabeça se chocando com brutalidade contra as rochas implacáveis. Mas é como se tivesse acontecido com outra pessoa. A lembrança, assim como a dor, parece distante.
Na escuridão, há paz. Ela não terá que se lembrar da surra que levou ou da dor que se seguiu, ou do que foi perdido quando aquele buraco sem fundo se escancarou na terra. Vai poder deixar tudo para trás de uma vez por todas. Basta permitir que seus pés deslizem e a façam cair.
Algo a impede. Uma certeza, bem lá no fundo, de que não deve fugir da dor, mas encará-la. Precisa continuar lutando.
Ela vê um clarão azul-cobalto, uma faísca solitária de luz. Seu coração dispara, e logo ela se lembra do que lutou para proteger e por que está tão ferida. A luz no início é só um pontinho, como se fosse uma estrela solitária no céu noturno. Mas logo o brilho seexpande e se amplia, um cometa indo bem na direção da garota, que vacila à beira do abismo.
Logo ele flutua diante dela, brilhando como da última vez que o viu. O cabelo preto encaracolado é uma bagunça perfeita, os olhos verde-esmeralda estão fixos nela. O rapaz está exatamente como ela recorda. Ele sorri daquele jeito despreocupado e estende a mão.
— Está tudo bem, Marina. Você não precisa mais lutar.
Os músculos dela relaxam ao som da voz dele. O abismo que se estende abaixo já não parece tão ameaçador. Ela deixa um pé pender para a frente. A dor em sua cabeça parece ainda mais fraca. Mais distante.
— Isso — diz ele. — Venha para casa comigo.
Ela quase aceita sua mão. Mas algo está errado. Ela desvia o olhar dos olhos dele, do sorriso, e vê a cicatriz. Uma faixa grossa e inchada de pele arroxeada que envolve o pescoço dele. Ela retrai o braço e quase cai.
— Isto não é real! — grita ela, encontrando sua voz.
A garota firma os pés no solo rochoso e se afasta.
Ela vê o sorriso do rapaz de cabelo encaracolado vacilar,
transformando-se em algo maldoso e cruel, uma expressão que nunca vira no rosto dele.
— Se não é real, por que você não acorda? — pergunta ele.
Ela não sabe. Está presa ali, naquele lugar de transição, com o garoto de cabelo escuro — mas a pessoa à sua frente não é a mesma que Marina amou um dia. É o homem que a colocou ali, que a golpeou impiedosamente e destruiu aquele lugar que ela adorava. E agora está profanando suas lembranças. Ela o encara.
— Ah, mas eu vou acordar, seu desgraçado. E vou atrás de você.
Com os olhos brilhando, ele finge achar graça, mas ela vê que o rapaz está com raiva. O truque perverso não funcionou.
— Teria sido tão tranquilo, sua tola. Você poderia ter simplesmente deslizado para a escuridão. Eu estava lhe oferecendo misericórdia. — Ele começa a recuar para o abismo, deixando-a sozinha. Suas palavras flutuam na direção dela. — E tudo o que lhe aguarda é mais dor.
— Então, que seja — diz ela.
O garoto de um olho só está sentado em sua prisão de travesseiros. Ele se abraça, não por escolha; os braços estão presos em uma camisa de força. Entediado, fita as paredes brancas com seu único olho. Tudo é acolchoado e macio. Não há maçaneta na porta, muito menos uma maneira perceptível de escapar. Seu nariz coça, e ele enterra o rosto no ombro para esfregá-lo.
Quando ergue o olhar, há uma sombra na parede. Alguém está de pé atrás dele. O garoto caolho se encolhe quando duas mãos enormes apertam ligeiramente seus ombros. A voz grave soa junto ao seu ouvido.
— Eu poderia perdoá-lo — diz o visitante. — Seus fracassos, sua insubordinação. De certa forma, foi tudo culpa minha. Eu não deveria ter enviado você até aquelas pessoas, para começo de conversa. Nem lhe pedido para se infiltrar no grupo deles. Seria natural que você desenvolvesse certas... afinidades.
— Adorado Líder — fala o garoto em um tom debochado, tentando se livrar da camisa de força que o prende. — Você veio me salvar.
— Isso mesmo — confirma o homem, como um pai orgulhoso, ignorando o tom sarcástico do rapaz. — Podemos voltar a ser como antes. Como sempre lhe prometi. Poderíamos governar juntos. Veja o que fizeram com você, como o tratam. Com o poder que você tem, deixar se trancar assim, como um animal...
— Eu caí no sono, não foi? — pergunta o caolho, sem emoção. — Isto é um sonho.
— Sim. Mas nossa reconciliação será muito real, meu rapaz. — As mãos fortes deixam os ombros do garoto. — Só quero uma coisinha em troca. Uma demonstração de lealdade. Basta me dizer onde os encontro. Onde encontro você. Meu povo... nosso povo... estará aí antes mesmo de você acordar. Eles vão libertá-lo e restaurar sua honra.
O garoto não dá atenção à proposta do homem. Ele sente a camisa de força afrouxar quando os fechos são abertos. Então se concentra e lembra que é um sonho.
— Você me jogou fora como se eu fosse lixo — diz o garoto. — Por que eu? Por que agora?
— Eu percebi que foi um erro — responde o homem, entredentes.