Eu devia ter uns onze ou doze anos quando meu pai começou a trabalhar na prefeitura. Isso nos idos de setenta e oito, na época da Copa na Argentina... Por aquela época - não posso precisar exatamente quando - construíram um tanque de carpas na pracinha em frente o prédio. Falando assim, "tanque de carpas", dá a idéia de que era uma coisa fina, inspirada nos jardins orientais, mas não. Imagine o colega uma caixa de concreto com pouco mais de meio metro de profundidade, algumas pedras canhestramente distribuídas por dentro e com uma pintura - renovada a cada semestre - vermelho berrante nas bordas, combinando com amarelos e azuis que cobriam os pedestais de um ou dois monumentos e mais um mesmo tanto de placas comemorativas, além das bordas dos canteiros de rosas. Era uma visão quase almodóvariana, de um colorido kitsch, beirando o mau gosto.
Eu nunca dera muita atenção ao dito tanque. Jogara migalhas de pão certa vez com minha mãe, mas nada que fizesse minha curiosidade acerca daqueles animais despertar a ponto de me levar a... bem, ouça a história.
Como eu ia dizendo, meu pai arrumou um emprego na prefeitura e, ficando esta a meio caminho de minha escola, ele me levava até lá, todos os dias, no bagageiro da bicicleta. E dia após dia eu passava pelo tanque de carpas sem que elas me dessem qualquer atenção, sempre lá, fizesse sol ou chuva, nadando sem pressa, como aqueles detentos que a gente vê nos filmes andando ao redor do pátio enquanto tomam banho de sol.
É incrível como uma coisa tão corriqueira e sem importância foi tomando vulto em minha mente. Começou com um dedo na água, depois veio a vontade de tocar numa delas, até que um dia eu quase me atrasei para a aula, bulindo com o tanque de carpas. Foi então que, sem perceber que havia planejado isso, chamei o Júnior num canto durante o recreio e perguntei-lhe o que achava de pescar uma carpa no "laguinho" da prefeitura.
Não exatamente "pescar", com varas e tudo o mais, claro, havia lá um vigia bastante ciente das brincadeiras infantis. Idéia absurda que era, meu amigo sequer cogitou recusar meu convite e ao cair da noite, após o jantar, eu o fui encontrar na esquina, munido de uma peneira.
- O que vocês pensam que estão fazendo? Isso aqui não é lugar de nadar! Xispa, antes que eu mande vocês pra delegacia! – berrou o vigia, gelando nossas espinhas.
Obviamente que, se não houvéssemos jogado a peneira a tempo, disfarçando nosso intento, ele teria, já de primeira, nos acompanhado à delegacia - ou mais provavelmente às nossas casas, o que dava no mesmo.
- Peixe filho da mãe! - Resmungava Júnior, não exatamente com tanta educação, enquanto rumávamos para casa. - Estávamos quase pegando!
- Deixa, a gente volta mais tarde! Meus pais sempre vão dormir depois da novela, aí eu passo na sua casa e a gente vem. Além do mais, tenho que pegar a peneira do meu pai que acabei jogando no meio das rosas.
Nenhum de nós teve de fazer qualquer esforço para espantar o sono. Bastou um miado para o Júnior saber que eu estava lá e menos de uma hora depois dos créditos finais de "Roda de Fogo", lá estávamos nós de tocaia. Não demorou muito até que o vigia se recolhesse à guarita com seu pequeno rádio chiando um deprimente programa romântico.
As carpas, porém, eram mais teimosas. Parando para pensar, calculo que levamos quase duas horas para pegar uma delas - sim, pegamos! Pois é. Sabe como você se sente quando desafia um cara mais forte ou quando o seu time entra para a primeira divisão? Foi mais ou menos assim que eu me senti. Molhado até os ossos e as mãos lanhadas, o coração batia rápido no peito inflado, respirando gostoso o ar frio e úmido da noite, enquanto segurava firme a carpa, presa com a peneira contra meu corpo.
Fazendo o mínimo possível de barulho, enchemos o tanque de lavar roupas de minha mãe e lá pusemos o peixe, que se encolheu a um canto respirando intensamente, provavelmente tentando recuperar-se dos minutos de apnéia a que o submetêramos. Claro que nada disso estava planejado, foi simplesmente o que achamos mais adequado fazer no momento e eu ainda não decidira o que faria com o animal no dia seguinte. Coloquei as roupas molhadas para lavar e acordei com minha mãe me chamando para a escola.
- O que é aquele peixe lá no tanque?
- Eu e o Ju pescamos ontem à tarde...
- Bonito. Nunca tinha visto desses no rio.
Meu pai também não, mas ele não seria convencido de que a carpa saíra do Tietê. Ele saberia exatamente de onde ela viera.
- Faz ele pro almoço, mãe!
- Ah, eu já temperei o bife... Mas faço pra janta, pode ser?
De qualquer forma, meu pai não voltaria antes do jantar. Pelo menos não antes que o peixe já estivesse suficientemente irreconhecível em sua cobertura de farinha. Eu até convidei o Júnior para jantar em casa. Mas, o que não esperávamos – e isso realmente foi um golpezinho sujo por parte do destino – era que meu pai, justamente naquele dia, apareceria em casa no meio da tarde.
Estava chegando da escola quando vi, da esquina, a Kombi da prefeitura estacionada em frente à minha casa. Cutuquei o Júnior,que interrompeu sua reflexão sobre a mãe de um jogador de futebol qualquer.
- Ferrou.
- Vamos em casa até ele ir embora!
- Não, cara, ele vai me procurar lá. E vai contar pra sua mãe também!
Enfim, duas horas depois, de dentro de uma construção abandonada, vi a Kombi voltando para a prefeitura. Então pudemos voltar para nossas casas, o que não impediu, obviamente, que exibíssemos marcas de cinta nas pernas no dia seguinte.
A carpa? Comemos na janta.