As pessoas passam mais calmas pelo Largo de São Bento hoje. É sábado e penso que boa parte delas não está trabalhando. Às nove da manhã a atmosfera ainda é cinzenta e uma leve bruma tolda-me a visão dos edifícios ao redor. Até o colorido personagem d'Os Gêmeos parece mais acabrunhado nesta fúnebre manhã.
Acabo de sair do velório de uma velha amiga. Velha no sentido de que nos conhecemos há muitos anos, pois ela contava apenas vinte e cinco. Há um peso em meu estômago, algo que luta e insiste em não ser digerido, que me deixa assim, fraca, ombros pesados, peito opresso e percepção distante. Agora que parei para pensar nisso, sei que é algo que ultrapassa a dor da perda de uma pessoa querida, que me foi muitas vezes mais irmã que meus próprios, é uma indigesta ironia da vida. Estou certa de que um sorriso sarcástico perpassava o semblante do homem no crucifixo sobre o caixão sempre que não olhávamos.
Ele próprio era parte da ironia da situação, como se risse de nós dizendo que não importava o quanto quiséssemos tirar a ele e suas tradições preconceituosas de nossas vidas, no final, ele sempre venceria, porque, afinal, sua voz era a voz da maioria.
Mas aquela sensação ruim também viera quando eu olhava o rosto pálido de outra amiga-irmã minha: fumando um cigarro negro e muito fino à porta do velório, Gisele tinha o nariz vermelho e inchado. A morta também lhe faria profunda falta. Ela me olhara com a expressão de uma criança desconsolada e eu pude ler em seus olhos azuis o que pensava: "Por que não eu? Por que alguém que gostava de viver e não eu que apenas passo os dias esperando a morte?"
Não, eu tampouco poderia suportar a morte daquela boêmia, mas Gisele sempre defendera seu direito egoísta de morrer jovem. E Érica, nossa finada, sempre discordava, dizendo que, já que não tinha como evitar a morte, queria morrer bem velhinha, afogada em seu querido mar, atropelada por um jet-ski, batendo a cabeça em uma prancha ou, quem sabe, se realmente tivesse sorte, dormindo serena em sua cama, com a brisa salgada balançando as cortinas de sua casa na orla, que ela ainda ia comprar, um dia!
Seu velório ia ser na areia, o povo de calção e canga lembrando das coisas legais que ela fizera e bebendo para esquecer. "Sonhando alto", ela dizia, "eu vou ter uma grande pira funerária que, quando todo mundo 'tiver chapado, vai servir de fogueira pro luau." E a gente ria, sabendo que ela merecia mesmo um fim calmo e cercado de tudo o que amava.
Érica era caiçara da gema, como sempre fazia questão de lembrar-nos, filha de pai pescador e mãe dona de um quiosque na praia, que, antes de a filha debutar, já tinha virado restaurante de luxo. Naquela época, Érica acordava às nove, punha a roupa de surfe e ia pro mar. Voltava às onze, tomava banho, almoçava e ia pra aula. Na saída, largava a mochila no restaurante e ia dar um mergulho com a turma. Depois, ficavam jogando bola ou papeando até que os pais os chamassem. Seu Jorge sempre chamava Érica às oito, porque era nessa hora que Ana fechava o restaurante e iam para casa. Aí ela tomava um banho, fazia a tarefa rapidinho e dormia feito uma pedra. Em janeiro e julho, quando eu descia a serra, nós passávamos as tardes ajudando no restaurante, afinal, "não é bom ficar marcando no sol esse horário", dizia Ana.
Ninguém chamava a mãe da Érica de "Dona" Ana, era só o nome e pronto. Ela casara grávida aos dezessete e por toda a vida conservou uma jovialidade tão grande que a gente se sentia meio ridícula de chamá-la de "senhora". Aliás, ela era tudo o que as senhoras desaprovavam: por experiência própria, logo que a filha entrara na menarca, ensinara-lhe a tomar contraceptivos e a usar absorventes internos. Érica, então, passou a admirá-la ainda mais quando percebeu que suas colegas não entravam no mar quando estavam menstruadas. Ela também foi a primeira a tomar um porre e, entre um vômito e outro, declarou à mãe que sabia ter sido uma idiota em não escutá-la quando disse que era hora de parar. Ana ria, ajudava-a a limpar o rosto e dizia "faz parte, agora você já sabe."
E a vida dela passou assim, um pouco largada, mas leve e ensolarada. Quando terminou o colegial, não achou interesse em nenhuma faculdade, passou a trabalhar em tempo integral com a mãe, que também estava feliz com a vida que levava. A única ambição de minha amiga era mesmo a sua casinha na orla. Já tinha até guardado algum dinheiro. Foi nesse ponto, nessa esquina da vida que ela topou com o ceifador.
Ana mandara-a sozinha pela primeira vez à capital para fazer compras. Havia anos que Érica ia, a cada seis meses, com a mãe comprar produtos para o restaurante que não encontravam com bons preços na pequena cidade litorânea e a garota já sabia perfeitamente onde ir e com quem falar. Ela não gostava do trânsito, da correria e do ar da cidade, na verdade, evitava sair de sua praia e essas eram praticamente as únicas oportunidades em que viajava.
Minha amiga morreu de intoxicação alimentar e demora no atendimento no hospital. Ela me ligou e, quando eu cheguei para ajudá-la, já era tarde. Nas duas horas que levei para chegar do Morumbi ao Hospital do Mandaqui, ela encontrou a morte sozinha, em uma sala branco-encardida, cheirando a éter e com a única janela voltada para o lado continental do país.
Você entende, caro leitor, que o problema não é a morte da minha amiga, mas o modo ingrato como ela a encontrou, como um momento tão importante de sua vida foi simplesmente tornado mais um fato cotidiano daquele hospital.
Érica tinha uma relação tão intrínseca com seu ambiente, era uma pessoa tão simples e despretensiosa e a possibilidade de que sua morte ocorresse fora de seu mundinho era tão remota, que era impossível não indignar-se com a situação. Mas, como se isso não fosse o suficiente, enquanto eu ligava para que Gisele viesse me ajudar com a burocracia e avisava os pais da falecida, eles mandaram o corpo para a preparação e logo depois para o velório mais próximo. "Entenda que o corpo deve ser enterrado o quanto antes", eles disseram.
E quando eu a vi novamente, ela já não era mais a garota que eu conheci, a surfista, a "caiçara da gema" que odiava a cidade grande e as roupas apertadas, cuja única ambição era uma droga de casa na orla! Não. Eles haviam pintado seu rosto moreno de branco e passado-lhe um ridículo batom que ela nunca usaria! O cabelo de Érica, queimado do sol e do sal, que ia tão bem com seu eterno bronzeado e suas cangas coloridas, parecia agora patético no travesseiro de cetim sobre aquele rosto falso.
Antes que Ana houvesse chegado, um padre falou algumas palavras que minha amiga realmente teria dispensado. Érica, assim como sua família, não suportava igreja e as culpas que tentavam impor. Não que ela fosse cética como Gisele, ela até acreditava em muita coisa, vivia acendendo velas e comprando cristais. Era praticamente uma pagã, que prezava pela liberdade acima de tudo.
Só sei que, no final, quando me encontrei sozinha, voltando à pé para casa - depois de, sem pensar, ter recusado uma carona - como que para coroar o amargo tom de ironia, lembrei-me de um conselho que minha mãe sempre me dava antes que eu tivesse terminado de por a mala no ônibus para as férias: "Cuidado com o que você vai comer lá na praia! Vai passar mal, hein?!"