Fora difícil disfarçar o júbilo com que recebi a notícia do falecimento de titia. Ora, a viúva não era rica, mas mantinha sob suas garras a herança de várias gerações. Não vá pensando a senhora que sou algum mau sobrinho! Não! Eu fiz questão de dar-lhe um funeral digno de nossa estirpe - mas a verdade é que nunca fui afeiçoado à megera. Nem o marido conseguira sê-lo.
Há muitos anos, devido a uma duradoura crise nos negócios, minha família viu a fortuna minguar e, chegando aos vinte e três, restava-me apenas a pequena casa onde mamãe expirara no ano anterior. Era uma casinha infeliz num bairro que outrora fora nobre, parcamente mobiliada e com quase nenhum objeto de valor. Tia Hilde vivia em situação parecida - mais por avareza que por necessidade, conforme viria saber no cartório.
Contava impaciente as horas de fingido luto, na ânsia de ir ter com o bocado que mais me interessava: a Nigra Nox. Era certo que a mansão estava a cair em pedaços, mas era uma construção imensa, num local adorável. Era uma pena a velha não tê-la reformado em vida.
O velório demorou-se terrivelmente. Vieram fazer a última visita à titia muito mais pessoas do que eu poderia crer. Para várias, acredito que aquela também fosse a primeira, assim como no caso de todos aqueles supostos parentes, cujos nomes eu nunca vira em nossa árvore genealógica. Embalado pelo esparso soluçar das carpideiras e pelo insistente aroma dos lírios fenecendo, deixei-me estar naquele ambiente saturado de negro, onde todos me olhavam com a mesma expressão de pena, tomando meus suspiros de tédio por dor.
Assim que me vi livre das últimas condolências, fui ao encontro de meu destino. Queria rever por dentro a casa em que passara apenas o primeiro ano de vida, antes que a reforma se iniciasse, dali a duas semanas. Não era vultosa minha herança, mas bastava para por em prática meus intentos. À medida que o carro se aproximava, conjeturava eu sobre o que teria levado os meus a abandonarem a mansão - se fossem dívidas, ela teria, certamente, sido vendida. Não me lembrava de jamais ter escutado algo acerca do assunto, nem nunca me preocupara em estar a par do mesmo. Agora, a última ex-habitante da casa - à exceção de mim mesmo - estava morta.
Os cavalos pararam à frente dos imensos portões, os quais abri com alguma dificuldade devido aos anos decorridos, e foi num misto de admiração e melancolia que atravessei o imenso jardim abandonado às ervas daninhas. Defronte a mim, a mansão se impunha como um dragão dormente. Sobre uma das muretas que ladeavam a escadaria, seguia-me com seus olhos fosforecentes um grande gato siamês. Com um leve arrepio, que atribuí à ansiedade, girei a chave na fechadura da imensa porta que gemeu nos ferrolhos à minha entrada.
A luz tocou as superfícies aveludadas pelo pó que se depositara, fechei a porta e abri o pesado cortinado que cobria as vidraças. Todos os móveis haviam sido deixados intactos e minha mente gritava, em vão, pelo porquê daquilo. Nem mesmo haviam se preocupado em cobri-los! Havia objetos decorativos de considerável valor, inúmeras esculturas, um grande retrato de Sua Majestade e vários castiçais em bronze, todos abandonados aos prazeres do Tempo.
Pus-me, então, a subir a escadaria principal. A tapeçaria estava desbotada e os degraus gemiam dolorosamente a cada passo meu. Um leve mal-estar apossou-se de mim quando já me aproximava do primeiro andar. Parei, então, apoiando-me no corrimão. Enquanto passava a mão pelos olhos, senti que algo pesado e macio caía no chão.
- Ora, não sabia que estava aqui...
Nada mais era que o felino que vira na entrada. Ele apenas me olhou com aquela expressão de esfinge que todos os gatos têm e sumiu-se para baixo. Tomei uma vela que jazia sobre uma mesinha e acendi-a, já que o corredor à minha frente encontrava-se numa densa escuridão na qual a luz das janelas não penetrava mais de meio metro. O brilho que a cera produziu mal bastou para iluminar as paredes e, por várias vezes, uma fina corrente de ar, que não pude descobrir donde vinha, apagava-a. O mesmo sucedeu com alguns lampiões que, tendo encontrado à parede, teimei em acender.
Em vários pontos havia grandes quadros retratando antepassados meus das mais diversas gerações. Homens, mulheres, jovens e idosos, todos com o mesmo olhar incriminador, com um quê de animosidade que destoava absurdamente de suas expressões serenas de retrato. Aquilo começava a deixar-me incomodado. Eu não era um intruso, mas começava a sentir-me como se o fosse. A casa parecia rejeitar-me, mas por quê?! Eu era um herdeiro legítimo, todas aquelas pessoas eram meus afins. A cada rosto pelo qual passava, as fibras de me corpo se enrijeciam – fiquei feliz ao ver o fim daquela agourenta passagem.
Cheguei ao fim do corredor com a dor de cabeça ainda mais aguda. Ele se abria para o que teria sido um maravilhoso jardim de inverno cujos vidros estavam, agora, cobertos pela hera, o que impedia que a luz penetrasse completamente. Mais uma vez fui surpreendido pelo baque macio do bichano pulando no soalho. Ele novamente aparecera em minha frente e, antes que me fugisse mais uma vez, reconheci aqueles olhos fendidos da última pintura que vira: uma garota no início da puberdade com um olhar de terrível rancor segurava aquele gato no colo. Voltei imediatamente ao rosto do retrato a fim de comparar os animais, mas qual não foi minha surpresa ao ver que não havia outra criatura senão a jovem.
Aproximei-me com a vela no intuito de examinar melhor a obra e, por um instante, pensei ter visto aqueles olhos odientos refletirem a luz. Gritei assustado, mas logo me convenci que aquilo não passava de uma ilusão da negra noite que assolava aquele corredor. Aquele ar antigo não me estava fazendo bem. Estava-me fazendo ver coisas de mais.
Prossegui examinando o jardim sepulcral que crescera no andar inferior em uma busca, agora vã, pela luz que vinha do teto de vidro. Foi então que ouvi uma porta que rangia fracamente. Uma onde de frio correu-me pela espinha, mas, decerto, era apenas alguma janela aberta. Segui o som e, não muitos passos à minha frente, descobri uma porta entreaberta que se movia lentamente, rangendo. Por que motivo, eu infelizmente não pude constatar, na medida em que não havia nenhuma fonte de ventilação no local.
Adentrei o aposento e mais uma vez deparei-me com aquela escuridão densa. Era daí, então, que vinha o agourento nome do local? Com alguma dificuldade caminhei por entre muitos objetos que jaziam no chão. Tateando as paredes, descobri a janela que procurava e abri-a. A luz, coada pelos vidros poeirentos, tocou com dificuldade os móveis antigos do que havia sido o quarto de uma donzela há cerca de setenta anos – eu o pude reconhecer pelo estilo, muito em voga na época. Naquele momento meu mal-estar aumentou, ouvi um ruído como o do vento nos pinheiros, algumas portas bateram violentamente no andar inferior e uma rajada de fétido ar veio de encontro ao meu rosto. Mais uma vez o bichano pulou em minha frente.
- Impossível! Você não estava aqui! – o terror se apossara de minha alma.
O gato simplesmente correu esconder-se num nicho mais escuro ao canto do quarto, atrás de um retrato bastante danificado por suas próprias garras. Era o retrato de um jovem – e ao dar-me conta disso o ar faltou-me – que se parecia imensamente comigo. Aquele era eu, decerto!
Saí do quarto e corri pelos corredores daquela casa maldita, sem dar-me conta aonde pisava, no afã de encontrar a saída. Sentia algo no meu encalço, mas não tive coragem de olhar para trás.
Para meu alívio, logo encontrei as portas por onde havia entrado, e saí sem nem mesmo fechá-las. Não me lembro como, mas cheguei à minha pequena moradia já ao anoitecer.
Não voltarei a pisar o solar da Noite Negra. Vendê-la-ei por quanto ma quiserem pagar. Sei que devo livrar-me dela. Se não o fizer, não poderei dormir sem sentir em meus sonhos o terrível cheiro de covas abertas e ser perseguido infinitamente por aqueles olhares odientos. Quisera eu, antes, que a morte tivesse encontrado-me na miséria!