Esgueira

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Mais notícias. Novas. Mais uma duas três mortes durante a madrugada. Os médicos não sabem exatamente o porquê. Três quatro cinco pessoas caíram mortas durante a madrugada. Pulmões em perfeito estado. Coração em perfeito estado. Cérebro em perfeito estado. Perfeitamente mortas. Faces vermelhas de choro são testemunho da vitalidade dos envolvidos. Todos jovens. Uma epidemia nova. Um vírus novo. Ninguém sabe.

No centro, durante a madrugada, quando não há uma alma viva se deslocando no semi-claro da iluminação pública, ouve-se ao longe um arrastar. Metálico.

Três meninas de treze anos sentam estáticas no sofá, fitando a TV no ambiente escuro. Os pais dormem, são duas da manhã. O áudio alto do filme é um farfalhar de folhas na floresta, ou um farfalhar de sussurros fantasmagóricos. Qualquer uma das possibilidades parece arrepiar a nuca de todas elas. Concentradas em não parecer aterrorizadas, nenhuma abre a boca quando o susto claramente elaborado para fazê-las gritar acontece.

O filme termina e todas vão para o quarto, devidamente organizadas em suas camas improvisadas para o dormidão. Apavoradas, fazem um pacto silencioso de manter a luminária acesa durante a noite. Enquanto tentam dormir olhando para o teto com o coração acelerado e medo de fechar os olhos e encontrar aquelas cenas tão bem marcadas na memória recente, o barulho ao longe chama a atenção.

Palmas suadas. Luz acesa. Olhos arregalados se encarando. Um grande "o que foi isso?" paira no ar, nunca dito. Pode ser só um gari arrastando seu latão de lixo. Mas o horário tão esdrúxulo para qualquer existência externa certamente levanta alguns questionamentos a solução simplista. Ninguém abre a boca. O som se aproxima lentamente pelo asfalto da rua.

Quanto mais perto, mais fácil é perceber as nuances do som. A imaginação corre enlouquecida e paranóide. Não é um latão de lixo, é um tambor metálico e algo mais. Talvez correntes. Quando chega na rua, é possível ouvir os passos pesados que arrastam o tambor. Parece pesado, mas o som é oco. Ecoa pelas ruas silenciosas.

As cortinas se abrem e as luzes se apagam novamente. Não querem ser vistas. Ninguém pode saber. Pelo reflexo da fachada espelhada de um prédio uma duas quadras acima é possível ver uma silhueta escura arrastando o tambor. Que está em chamas. E as correntes. Que estão em chamas. Uma das meninas começa a chorar.

A luz de um dos apartamentos do prédio da frente acende e a janela abre. A vontade é de gritar para fechar desligar esconder chorar sumir, mas é só silêncio. E pavor. O pavor é úmido e almeriscado. Enquanto lágrimas silenciosas ainda correm, agora das três, vê-se um rosto para fora daquela janela. Um rosto jovem. De vinte e poucos anos. De headset e olhar irritado, como se fosse gritar com qualquer que fosse a fonte de todo aquele barulho naquele horário.

Os olhos irritados reviram a rua em busca da origem dos sons. Olhos vivos. Castanhos. Determinados. Arregalados. Olhos mortos. Pálidos. Vidrados. O moço de vinte e seis vinte e sete anos cai com um baque ruidoso no assoalho.

"Medusa" uma delas sussurra, quase inaudivel.

Na manhã seguinte, mais notícias. Mais uma duas três mortes durante a madrugada. Os médicos não sabem exatamente o porquê. Três quatro cinco pessoas caíram mortas durante a madrugada. Nenhuma delas tinha treze anos. Nenhuma delas tinha treze anos e ficou até a madrugada assistindo filme com as amigas. Nenhuma delas viu o reflexo da medusa.

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