Hoje era a sétima vez que eu estava tentando e talvez a última, não me sobrariam mais tentativas depois dessa. Seis anos de namoro: três felizes, um mediano e dois terríveis; apenas marasmo e as ressacas de decepção se tornaram quartas-feiras normais na nossa praia, no entanto, eu ainda tinha esperança de ver uma vela vermelha na linha do horizonte.
Por isso essa viagem para a casa de praia dos meus tios onde a gente se conheceu naquele fim de ano, onde a gente se beijou pela primeira vez ouvindo aquela canção sobre bolhas do mar, sol e areia que você nem reconhece agora que toca no rádio. Antes você cantava para mim "minha sereia, minha sereia"…
Aqui nessa casa, eu vivi muito brincando na areia, devolvendo conchinhas ao mar e se eu cavasse fundo o suficiente poderia encontrar um siri dourado naqueles buraquinhos de ar que se formam quando as ondas vêm e retroagem, mas tudo o que há agora é a brisa contínua contra as rochas. Eu não tenho todo esse tempo.
Não há porto que nos ligue mais ou farol para guiar nesse oceano entre nós, você não queria vir, não gosta tanto assim dos meus tios e nem das respostas que eles tentam pescar quando não senta ao meu lado da mesa, nós mesmos não pescamos nada.
Ao meu lado da cama é frio só sei que você está ao meu lado por causa da respiração para o outro lado. Na terceira noite a porta abre, você pulou da varanda e suas pegadas são sombras na areia, você é pálido ao luar, eu sou azul e ela é perolada.
Tenho certeza que ela me viu, as mãos cintilantes fincadas no seu torso e o cabelo negro grudado nas costas molhadas descendo até as ondas nas cinturas de vocês dois. As pupilas riscadas me espreitam e os dentes de tubarão te devoram. Desde então eu escuto você escutando a canção dela e fugindo no desenrolar das notas pela madrugada que falam sobre as bolhas e os siris que saem das bocas dos mortos no fundo do mar.
Os dias se repetem, as noites não, você age normalmente, seus olhos estão vazios, você age normalmente. Seus passos estão mais longe, toda vez que a lua se levanta do horizonte azul escuro você quer se juntar a ele, à ela.
Você não escuta, resiste, não lembra, sou só um barquinho na tempestade imensa, ela é raio, furacão, vento e espuma que sufoca. Ela está te levando de mim com essas ventosas nos dedos e corpo escorregadio, agarrada até o seu pescoço assim como a maré. Eu faria qualquer coisa para te salvar.
— Espera! — Meus passos são lentos na água e a brisa leva embora minha voz. — Deixa ele! Me leva no lugar! — É o último salva-vidas dos desesperados. Esse pedaço podre de madeira que é o único que flutua.
Dentes de tubarão, afiados e mortais. Ela te solta, quebrado o encanto e atordoado à beira-mar. As mãos geladas dela me capturam, cada unha um anzol, o toque é pegajoso ao mesmo tempo que liso, penso nas conchinhas que guardei numa garrafa plástica há muito perdida, eu prometi que as teria para sempre…
Os seios dela se comprimem contra os meus, minha blusa é água e sal, ela é água, sal e mais uma coisa profunda e antiga que não lembro o nome. Ela me afasta do raso sem pressa, enfia as mãos nos meus cabelos empurrando a minha cabeça para trás. Mal consigo ver ele: um pontinho preto na praia.
— Você vai me devorar? — pergunto entre o vai e vem das ondas.
Ela ri alto como a maré na lua cheia.
— Ele era um lanchinho… você é… interessante…
Sua cauda enorme envolve minhas pernas como um caravela me puxando para o fundo escuro onde somente o reflexo de suas escamas é luz. Penso na canção sobre homens afogados e os siris que se alimentam de suas carnes. É essa a canção que escuto?
Já não posso respirar, abro a boca buscando por ar apenas bolhas saem dela nesse infindável fundo azul. Seu rosto afiado floresce como uma anêmona fluorescente entre o nanquim que é o cabelo, afasta meus braços, suas ventosas grudam no meu rosto e a dor dos meus pulmões me fazem debater debilmente em seus braços e corpo de âncora. Com a língua coloca uma pérola como a sua pele em minha boca despejando-a goela a baixo tal qual os litros de água que engoli.
A cada segundo estamos mais fundo, eu não sinto mais dor, estou anestesiada, não me importa quem ficou gritando na praia e nem mais nenhuma canção além daquela que você canta para mim quanto mais fundo abraçadas nadamos.
"Minha sereia, minha sereia…" é tudo o que eu escuto.