2018
- Céus! Que lugar mais quente.
O calor amazônico é sempre a primeira coisa que nos damos conta quando chegamos a Manaus. Não há como ficar indiferente. Eu e Heloisa chegamos por aqui no mês de agosto. Dizem ser a pior época.
Com a testa franzida tentei olhar para aquele casarão estilo europeu, do período da Belle Époque. Portas, janelas, pé direito, tudo bastante alto para os padrões atuais.
- Meu bem. Por que você quis alugar essa casa, hein?! - Pergunto, ainda que já saiba a resposta.
- Ora, Marcus. Você está cansado de saber que eu gosto do estilo vintage. E tem mais uma surpresinha lá dentro. Na sala de estar.
Ela voltou ao carro para buscar o restante das malas com aquele sorrisinho maroto no rosto, próprio de quem sabe que eu não vou contestar. Sou louco por ela. Depois dos cinco anos de luto pela minha primeira esposa, quando achava que não voltaria a sorrir com prazer. Heloísa, mulher de sorriso fácil e, toda decidida, entrou na minha vida sem pedir licença.
Claro que isso só aconteceu por causa de uma amiga de profissão. Foi ela quem insistiu muito para que eu fosse ao lançamento do seu livro em uma grande livraria no bairro do Cachambi, zona norte do Rio de Janeiro, onde, minha agora esposa, trabalhava como gerente. E é por causa do trabalho dela que nós estamos aqui. Heloísa foi enviada para a livraria de Manaus para tentar dá um Up nas vendas que andam beirando o limite mais baixo que pode ser suportado. Também porque eu estou buscando encontrar minha inspiração literária que se foi junto com a morte da Aline.
- Tcharam... . Olha a surpresinha... . O que achou?
Fiquei um tempo sem palavras. Na minha frente estava uma poltrona antiga, daquelas com as perninhas tortas, acolchoada, toda trabalhada em alguma madeira nobre, pintada ou revestida de ouro (pelo menos é o que parece), só que desgastada pelo tempo.
- É.. - Linda... - Linda, é claro! - Dou um sorriso nada convincente. - Mas, por que esse móvel ainda está aqui, no meio da nossa sala de estar? Os antigos ou os primeiros donos da casa não a deveriam ter levado, ou quem sabe, tê-la jogado no lixo? - Perguntei um tanto melindroso com a possível resposta atravessada de Heloísa.
- Pelos céus Marcus Brandão! Você não sabe mesmo apreciar uma relíquia! Fique sabendo que esse "lixo" pode ser uma peça rara do início do século XIX. Possivelmente dos Miranda Leão, uma das famílias mais antigas e conhecidas aqui no norte do Brasil. Essa casa também é uma preciosidade. Você que é escritor deveria se interessar por essas histórias. E digo mais, deveria gostar. Quem sabe não é delas que vem sua inspiração? - respondeu decidida.
- Está certo. - Assenti resignado.
É interessante como o centro da cidade é agitado e barulhento durante todo o dia, entretanto, silencioso e quieto depois das dezoito horas. Só ouço o barulho distante dos veículos passando nas ruas principais, que não é o caso da rua onde alugamos a nossa casa. Nela, além do silêncio, tem a escuridão, pois poucos postes por aqui têm iluminação. Com Heloísa trabalhando até altas horas da noite, só me resta à companhia dos meus livros e da bendita poltrona, que já está se tornando minha companheira inseparável.
Passava um pouco da meia-noite quando ouvi barulho de carro. Era Heloísa chegando.
- Oi amor. Ainda acordado? Vou tomar um banho e já nos deitamos.
- Ok. Vou esperá-la na cama.
- Ultimamente tenho tido uns pesadelos repetitivos. Parece que estou em outra época, mas não sou eu exatamente. É difícil explicar. Estou nessa mesma casa, sentado naquela poltrona da sala de estar, com um barulho de rádio ao fundo, tocando uma música que me parece familiar. Vejo um homem bem vestido, de calça social e colete combinando, fazendo coisas horríveis com...
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Sala do Mal Estar
Short StoryUma casa. Vários cômodos. Dentre esses cômodos, uma sala de estar. O lugar preferido de Marcus Brandão. Escritor carioca que ainda traz no peito o amargor da viuvez. Mas decide dar-se uma nova oportunidade de ser feliz casando-se com a independente...