A estrela

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O marido morreu fazendo sons angustiantes e ganhando uma coloração imprecisa: um cinza arroxeado que, de repente, era vermelho e, do nada, se tornou amarelo. Melinda chorava todas as vezes que se lembrava daquelas cores e do fim, do instante exato em que ele parou de respirar.

Serviu-se de mais um pouco de chá de camomila e foi se sentar na varanda.

Para acompanhar os últimos anos de vida do marido se instalou naquela casa imensa e mal decorada no interior mais profundo do qual já se teve notícia. Herança de estranhos e, portanto, não lhe pertencia. Era de um avô que deixara para um tio e aquele tio para uma prima do marido. Melinda mal a conhecia, a tinha visto rapidamente no próprio casamento. "Simpática, ainda que estranha", explicou-lhe o marido à época.

Estranha mesmo. Incomum, enigmática, silenciosa e bonita demais para ser real. Melinda não tinha família e, portanto, ficava confusa como isso de ser parente funcionava. Os outros tios e primos – que gostavam de frequentar sua casa moderna enquanto o marido e as finanças estiveram saudáveis – aconselharam-na a não aceitar presentes e favores da prima estranha.

– Por quê? – Melinda quis saber.

A tal era envolvida com coisas. "Que coisas?". Essas coisas terríveis que pessoas normais, urbanas e cultas dizem que não existem, mas das quais, por via das dúvidas, preferem manter distância: magia, ocultismo, bruxaria. Melinda pouco se importava se essas coisas eram reais pois real, para ela, passou a ser apenas a velocidade da doença do marido. E a prima estranha havia sido a única a dar ajuda – que é bem diferente de oferecer ajuda. A mulher fez-se presença e não telefonema. Viu vômitos, gritos, sentiu cheiros e medos ao lado de Melinda e ofereceu a casa isolada e dinheiro na conta quando as coisas realmente se tornaram terríveis.

E eles precisavam. Amavam-se o suficiente para ficarem juntos, mas a doença do marido comeu-lhes as economias, a casa própria, a dignidade. Ele precisava ser limpo, alimentado, acarinhado e, na casa distante e enorme, Melinda podia, enfim, se concentrar em cuidar do seu único amor enquanto a prima cuidava dos horrores que não cessam mesmo diante das maiores tragédias: as contas, os impostos, os falsos amigos e familiares a aconselhar o que pode e deve ser feito sem ter a menor ideia do que pode e deve ser feito diante de uma doença incapacitante e devoradora.

– Você não vai abandoná-lo – a prima disse enquanto lhe mostrava a casa. Algo, em Melinda, a fez crer que aquela era uma pergunta, ainda que tivesse soado como afirmativa.

Não, não o abandonaria. Demorou tanto a encontrá-lo... Precisou ir a festas, bares, jantares. Preencher perfis em sites da internet, instalar aplicativos no celular, conhecer estranhos, amigos de amigos e aturar muitas decepções e traições, suportar cheiros e toques que não eram suportáveis. Não iria, jamais, deixar o único que lhe fez sorrir de verdade.

Ele, enfim, a deixou do único modo que é possível para aqueles que se amam: a morte os separou.

E essa hora, a mais escura da sua vida, aconteceu em um início de noite comum. Tão comum quanto aquela que Melinda, já viúva, experimentava enquanto saboreava o chá e imaginava qual próximo local chamaria de casa. O céu era o mesmo. As estrelas lá, muito brilhantes, pareciam mais baixas e podia-se imaginar ser possível tocá-las. O marido, enquanto ainda caminhava, chegou a vê-las e admirá-las.

– Nunca havia notado que estrelas podem ser bonitas... – ele gemeu.

Aquelas eram. Daquele céu que pertencia àquela casa.

– Ainda bem que aceitamos vir pra cá – ela lhe dizia todas as noites. Até naquelas nas quais ele não andava mais e nem sequer a ouvia. O marido também parou de falar e chorar. Até que, enfim, parou de respirar.

Melinda descobriu, então, que passara os últimos anos afogada na ilusão do planejamento. Porque a morte está nos seus planos e pensamentos o tempo todo quando há um doente. Ela vaga pelos remédios, curativos, cheiros. Nos discursos assépticos e inócuos dos profissionais da saúde com quem Melinda, que não toma sequer vitamina C, foi obrigada a conviver. Desprezava todos. Com seus semblantes impassíveis, suas roupas impecáveis e seus atos inúteis.

Tinha mais respeito pela morte. Cujo truque é parecer previsível, mas não o ser. Melinda a esperou e esperou. Rezou e pediu resignação. E convenceu a si mesma que estava pronta.

Não estava.

Porque a morte não é inquilina, ela é proprietária. Tomou posse do que ela achava que era seu, em um momento em que ela achou que havia se levantado apenas para beber um copo d'água e dar uma olhada no que estava passando na tv. Foi rápida, ainda que tenha parecido lenta e não permitiu a beleza e a eloquência que os filmes gostam de fazer crer. Foi repleta de gritos, falta de ar e medo. Nos olhos arregalados dele que nunca haviam lhe parecido tão azuis.

– É um fim que não traz encerramento – ela resmungou para a prima estranha, ali sentada ao seu lado. Quando ela havia chegado? Melinda não se lembrava de, sequer, ter aberto a porta.

– Olhe para o céu estrelado – a outra ordenou. E ela olhou. Um céu tão azul, um azul gelado e nobre como os olhos do marido, como os olhos da prima. Melinda deixou a outra pegar no seu braço e esticá-lo para o alto. Sentiu uma pontada de dor.

Havia tocado uma estrela.

– Isso é possível?

– Tornou-se agora – a prima falou. E, num instante, Melinda tinha nas mãos esse algo brilhante, faiscante que rodava sem parar e feria as palmas de suas mãos como pequenas agulhas. Estrelas não deveriam caber nas mãos humanas, mas ali estava uma. "Só uma, você não precisa de outra", a voz da prima agora estava distante. E Melinda sentiu, sem que a outra precisasse explicar-lhe, que a estrela poderia se tornar o que ela quisesse.

A estrela, então, fez o que as estrelas fazem: brilhou ainda mais. Clareou aquela noite imensa. Gigantesca porque não era noite do céu, oposição do dia, rotação da Terra: era noite de vida. Estava dentro dela. Melinda, assim, fechou os olhos e desejou. A estrela, logo, tornou-se calor não do sol, mas do amor. E criou braços, pernas, tórax e rosto. Envolveu-a como no dia em que se apaixonaram.

Prometeu-lhe nunca mais se apagar.

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