Não comece a ler Uma Vida Interrompida se tiver alguma coisa para fazer
logo em seguida. À história de Susie Salmon ("como o peixe", diz ela, na
primeira linha do romance), quando começa a se desvelar na sua frente, faz os
compromissos, assim como os amigos, a família, a fome, o sono e até o celular
tocando, parecerem bem pouco interessantes e menos urgentes.
É preciso muita ousadia para escrever um livro assim. O original, em
inglês, chama-se The Lovely Bones, ou "Os ossos adoráveis", numa tradução
bem livre. Ossos não são adoráveis, a não ser que a protagonista seja uma
paleontóloga. Mas a narradora desta história tem apenas 14 anos e sonhava ser
fotógrafa enquanto ainda tinha toda a vida pela frente. O livro é em si uma
contradição: cheio de humor e esperança, apesar de ter como pontapé inicial o
estupro e assassinato de uma adolescente.
Os "ossos" do título em inglês não são os restos de Susie, a menininha
que conta a história depois de morta. São a estrutura sobre a qual a vida é
construída. É uma idéia abstrata, positiva e ousada a medida em que é quase
um clichê, mas virado de pernas para o ar. Outra audácia é a de colocar Susie
Salmon no céu. Sim, é para cima que vai nossa protagonista. E é para baixo
que ela olha, com olhos atentos, enquanto conta a história de sua família,
agora traumatizada,de como seu assassino planeja os detalhes minuciosamente
para não ser descoberto, de como a polícia não tem nenhuma pista sobre
como chegar a ele.
Susie Salmon conta sua saga em primeira pessoa, com todo o calor e o
envolvimento e a parcialidade de uma história narrada assim. Mas, como está
no céu, também tem a liberdade de uma narradora onisciente e acesso a coisas
que nunca veria ou saberia de qualquer outro ponto de vista. Então sabe dos
sentimentos inadequados que sua mãe começa a ter depois da morte da filha,
o jeito desesperado como seu pai começa a agir, a vergonha de sua irmã mais
nova, que agora é a garota mais popular e ao mesmo tempo mais rejeitada do
colégio, e o desnorteamento de seu irmãozinho de 4 anos, que simplesmente quer ver os pais pararem de chorar e saber quando sua irmã mais velha chega
"de viagem".
O início da história se dá no inverno de 1973. Antes, portanto, da
descoberta do DNA, quando uma gota de sangue e um fio de cabelo ainda
não eram suficientes para desvendar um mistério. O que for um grande passo
para a humanidade não representa necessariamente uma esperança para as
artes. O que seriam dos livros de Raymond Chandler, dos filmes de Alfred
Hitchcock e das peças de Frederick Knott na era do DNA?
Mas não é justiça o que busca Alice Sebold, a autora do livro. Não nesta
obra. Aqui, é o pai da menininha morta, Jack Salmon, e o chefe da policia
local, Len Fenerman, os que mais querem vingança. À própria autora, que
com a publicação deste livro, seu primeiro romance, virou celebridade nos
EUA (Uma Vida Interrompida foi o livro de ficção mais vendido nos EUA
em 2002, com 1,5 milhão de cópias) e alcança agora sucesso mundial (os
direitos do romance já foram vendidos para mais de vinte países), só queria
contar uma boa história.
A escolha do tema, no entanto, tem a ver com a sua vida. Nascida em
Madison, Estado do Wisconsin, em 1963, Alice Sebold se parece com a atriz
australiana Cate Blanchett, só que morena e mais madura. Hoje em dia, fala
com serenidade sobre o processo que a levou a escrever este romance. Mas
não foi sempre assim.
Aos 19 anos, quando estava no primeiro ano da faculdade e ainda
sonhava ser poeta, foi estuprada em um beco do campus da universidade. Ao
chegar à delegacia, machucada, assustada e não mais virgem, ouviu de um dos
investigadores que várias mulheres haviam sido estupradas e mortas no
mesmo beco antes dela. Em comparação, disse que ela tinha muita sorte.
"Lucky" é sortuda em inglês e é também o nome do livro que Alice Sebold
escreveu contando sua própria história. Lucky: a memoir, ou "Sortuda: uma
história real" (de novo em tradução bem livre), foi lançado em 1999, dois anos
antes deste.
Alice Sebold queria criar um romance de ficção quando pensou na
história que viria à se transformar em Uma Vida Interrompida. Não escreveu
seu livro de memórias para desabafar ou por um desses impulsos de escritor que vez por outra aparecem em entrevistas. Escreveu por consideração à Susie
Salmon, sua personagem principal.
Já haviam passado 15 anos desde o incidente violento quando ela criou
Susie. Entre uma coisa e outra, a autora trancou a matrícula da faculdade e foi
morar em Manhattan, onde se envolveu com drogas e com todo tipo de
maluco que perambulava pelo East Village nos anos 80 e 90, antes do furacão
Giuliani varré-los todos da cidade. "Não levava em Nova York um tipo de
vida lá muito voltado para a reflexão", brincou ela em uma entrevista ao site
www.powells.com. Mas nunca parou de escrever. Poesia é sua primeira paixão
(ou seu "combustível", como gosta de dizer). Às palavras são seu legado.
Não por acaso, são escritores os seus amigos mais íntimos. Entre os que
mais a inspiraram e estimularam, estão Jonathan Franzen, o valente autor de
"The Corrections" que fez polêmica quando recusou ser colocado na lista dos
preferidos de Oprah Winfrey; Anna Quindlen ("Um Amor Verdadeiro",
"Pequeno Grande Guia para Uma Vida Feliz"); Aimee Bender "The Girl in
the Flamable Skirt: Stories", inédito no Brasil); e Raymond Carver (1938-1988,
autor de "Fique Quieta, Por Favor" e "Short Guts: Cenas da Vida" — este
último virou um filme genial dirigido por Robert Altman). É casada com Glen
David Gold, autor de um dos livros de maior sucesso do ano 2001, "Carter
Beats the Devil", uma versão fictícia da vida e da obra do mágico Charles
Carter, que teve certa fama nos anos 20, mas não é tão lembrado nem
reverenciado quanto seu contemporâneo Houdint.
Nova York está para os escritores como Los Angeles para as estrelas de
cinema, ou seja, quase todos os que fazem sucesso, assim como absolutamente
todos que sonham virar um sucesso de uma hora para outra, vivem lá. Hoje
Alice Sebold e seu marido vivem em Long Beach, uma praia afastada de Los
Angeles, onde podem escrever em paz, sem fazer parte da "comunidade". Foi
lá que nasceu Susie Salmon, como um conto que a autora escreveu num dia
em que não tinha nada importante para fazer. Depois, ao lê-lo cora calma, se
apaixonou pela personagem e decidiu transformar a história em um livro.
Começou pelo começo. Descreveu o estupro e o assassinato, e fez a
apresentação dos membros da família e de alguns amigos fundamentais. A
experiência pessoal da autora, porém, estava começando a querer entrar no seu livro de ficção, e essa não era a proposta. Para se livrar de uma vez por
todas e poder contar a história de Susie Salmon como queria, decidiu
interromper o romance e escrever um livro de memórias. Assim nascia
"Lucky".
Como em Uma Vida Interrompida, o primeiro capítulo de "Lucky"
descreve detalhadamente o ataque. Ao contrário de Uma Vida Interrompida,
porém, o primeiro capítulo do livro de memórias foi o último a ser escrito.
"Sinto que Lucky! foi uma parte do meu processo de escrever Uma Vida
Interrompida. Ele existe por si só, mas não acho que o teria escrito se não
fosse tão importante para o romance", disse a autora.
Um livro é completamente diferente do outro, apesar da óbvia
semelhança. O de não ficção é uma história dura, contada por uma jovem
universitária que continua a se sentir violentada pelo processo lento das leis
norte-americanas. Enquanto espera o julgamento, ela encontra o homem que a
atacou algumas vezes na rua, se vê alvo de curiosidade entre os colegas da
faculdade e da esquisitice familiar que se segue quando um fato inexplicável
acontece a um dos membros da família.
Tudo isso acontece também em Uma Vida Interrompida, mas desta vez
os fatos são narrados por alguém que tem ao menos a certeza de que nada
mais pode atingi-la. A história de Susie Salmon, por paradoxal que seja, é cheia
de esperança, navega quase sempre contra a corrente da realidade. Aqui, Alice
Sebold transforma uma tragédia inaceitável, o luto de uma família e a
impossibilidade da justiça em boa literatura.
Por isso tudo e por muitas outras razões que você só vai entender ao
folhear as páginas deste livro, é melhor desligar o telefone, desmarcar os
compromissos e tirar o resto do dia de folga. Vai valer a pena.TETÉ RIBEIRO
VOCÊ ESTÁ LENDO
Uma Vida Interrompida. Memórias de Um Anjo Assassinado
General FictionCONCLUÍDO! NÃO É UMA OBRA DE MINHA AUTORIA, TODOS OS DIREITOS RESERVADO Á ALICE SEBOLD. The Lovely Bones, o primeiro romance de Alice Sebold, é o maior fenômeno literário dos últimos anos. Foi o livro de ficção mais vendido nos EUA em 2002, com 1,5...