Ana não teve nenhuma imposição para fazer duas residências, mas escolheu assim. Fez psicologia e todos os dez anos que a grade de psiquiatria pedia. Durante os anos de formação no primeiro curso, trabalhou numa loja de roupas qualquer e quando se formou atuou na área para estudar outra vez. Nenhum caso era fácil, mas poucos chamaram sua atenção quando começou a clinicar. Um caso insólito, que requeria mais habilidades verbais e cognitivas que a experiência médica, foram as consultas que um paciente chamado João a proporcionava. Era interessante para os dois, muito para ela como profissional e ser humano, e para ele como paciente.
Na manhã fria que seguia a sexta-feira daquele 28 de fevereiro, João havia sido convidado por Ana a fazer um teste quase que pueril, na sala do consultório do condomínio Edites na rua das Jabotis, 109. Tais exames não o agradavam, pois acreditava precisar falar mais do que ser analisado por resultados. Seu olhar já demonstrava a concentração que tinha chegado ao passar em torno de dez minutos do que seria a dinâmica proposta.
Um livro feito de tecido, forrado com feltro e alguns personagens criados com bonequinhos, justamente para serem colados nesse caderno e montar uma história. A catadura fechada de Ana acompanhava o olhar perscrutador de João enquanto ele decidia qual o personagem que iria colar. A dinâmica do jogo? Montar uma história de quando ele era criança, de uma memória que ele tinha guardado. Alguns dos bonequinhos, personagens que ele poderia escolher para representar essa história, eram propositalmente variados, a história era dele, ia escolher os protagonistas do enredo.
Ana percebia no relógio um esgotamento do tempo, mas também ele estava findando o que seria a temática da terapia dessa vez. Não havia porque pressa. João titubeava nas escolhas, mas quando colava no feltro seu personagem, era de maneira categórica. Era de manhã e embora não fosse escuro, a médica havia criado um ambiente de penumbra por ser mais mnemônico.
E isso na verdade ajudou muito João. Seu âmago estava sentindo um certo desabafo pela história que ele produzia no livro. É bom colocar demônios para fora, ainda mais quando estes podem ser dominados. Ele acabou. Parecia ter dito que cessou com uma respiração de alívio. Ana o contemplava com um semblante fresco, que naquele momento transpirava passividade e convite.
— Vamos lá — disse ela.
O nervosismo o deixou trêmulo, não havia certo ou errado, no entanto, a exposição a algo delicado o fazia se sentir vulnerável, mas a psiquiatra o deixava feliz, consequentemente, calmo.
— Não sei que idade exatamente eu tinha quando me aconteceu isso, só sei que era muito pequeno, talvez uns oito anos de idade — prologou. — Porque ainda estava aprendendo a ler.
Até esse momento ele falava fitando a especialista que o olhava também. A luz que iluminava as fulguras da história do garoto mostravam a primeira página que ele colocou com um garoto marrom e do lado dele um livro.
João, um garoto da cor de Adão, foi aficionado desde criança a ser mutista e desde então tentava resolver, dentre outras coisas, suas relações interpessoais. Estava no oitavo mês de terapia e embora sua vida fosse uma rotina nenhum dia era como o outro.
Sentia um alívio por ter um respaldo onde podia se expor sem ser punido e ser compreendido ao falar. O olhar descia vagarosamente para a montagem no caderno e ele prosseguia sua narrativa.
— Quer que eu vire para você ver melhor? — indagou.
— Assim está bom, pode deixar virado para você — disse em tom amoroso.
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Ainda Há Muito Do Que Se Falar
Short StoryPessoas comuns passam por problemas, que no geral excedem o coração. É bom ser ouvido por quem sabe escutar. É bom ler também, para não tomar como exclusivo um sentimento que pode te machucar como os outros.