Capítulo único

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Eu segurava o boleto com uma mão e a alça da bolsa com a outra, olhava atenta para todo papel pregado nas paredes e vidros da lotérica, procurava qualquer coisa que eu pudesse ler enquanto passasse o tempo de espera na fila, mas não tinha, em dez minutos li tudo ao alcance da minha vista e agora estava entendiada sem poder contornar o aguardo. Então o som de moto muito alto veio de fora me chamou atenção, olhei e vi quando você desceu de uma CG 160 cor vermelha, e pelo ruído eu tenho certeza que mexeu em alguma peça dela para aumentar o barulho, pelas suas roupas eu sabia que vinha do trabalho. Pausa para o almoço, quem sabe?

Você tirou o capacete, entrou na lotérica muito sério, conferiu as horas no celular e depois encarou a fila com o cenho franzido, marcando levemente o maxilar e logo relaxando, vi isso acontecer lentamente, mas foi bem rápido. E quando se curvou de lado para conferir quantas pessoas haviam onde eu estava, me mexi quase desesperada, virei de frente e esperei não ser vista por você. Era tão estranho ainda. Quanto tempo fazia? Cinco anos? Não! Quatro. Quatro anos que tudo que vivíamos eram esses encontros despropositais armados pelo acaso, e ainda assim eu me sentia uma estranha dentro de mim mesma sempre que nos encarávamos sem dever algum por lentos segundos, aquela dúvida se acenava ou não, se falava ou não, se sorria ou fazia qualquer coisa que indicasse que ainda lembrávamos um do outro e que aqueles dias felizes não foram delírio individual.

Eu quis virar para trás e te olhar de novo, nem que por poucos segundos, mas e se você estivesse se perguntando "É ela?" enquanto me olhava? A confusão mental seria tão vergonhosa que era mais decente fingir que não te vi, fingir que você não estava ali, fingir até que eu estou cega do que te encarar e ter de agir como uma adulta sensata. Definitivamente não. Até porque, foram tantos anos gravando suas características de perto, apreciando os detalhes e os sorrisos pelos quais me apaixonei que agora o tempo sem te ver não me fazia esquecer seu rosto, eu reconheceria você mesmo estando longe, e apesar de ser comum em tantos outros a boca grande e carnuda, o nariz achatado, a altura exagerada, a cor morena da pele, ou os olhos que viviam indecisos entre um marrom normal e um avelã de brilho inconfundível, eu ainda assim te reconheceria assim que o visse — mas isso talvez seja porque eu tenho tentado te encontrar onde quer que eu vá... Quero dizer... Eu não procuro encontrar você, mas sim quem você foi e representou para mim. É uma busca desesperada para sentir de novo o que faz tanta falta agora, é só uma falta humana te der outro alguém ao lado e saber que aquele alguém está com você e que você está com ele.

Não que eu fique desesperada ao não me sentir ligada a alguém, eu apenas sou repetitiva e disso você sabe muito bem. Repito sorrisos, repito histórias e repito palavras, obviamente eu repito o desejo. Antes de você teve outro, quando ele se foi eu desejei alguém novo, então você veio e depois se foi, agora, nada mais natural que eu desejar de novo um alguém novo; mesmo que eu deseje baseada em como você costumava ser. E desejo sem culpa alguma.

Havia um sentimento que me deixava muda perto de você! Eu amava quando me acometia e me deixava doente de amor, os sintomas eram tão, mas tão gostosos, que eu poderia viver doente para sempre! Sorrindo, cantando, os olhos brilhando, alegre até a alma. Era felicidade. A felicidade mais bonita e cativante que já vivi, com músicas, filmes e danças sem coreografia. E os sonhos. E as promessas. E as lágrimas... Muitas lágrimas, nem todas de tristeza, mas a maioria. Se eu me recusava a olhar novamente para você agora, o motivo eram elas. Se eu desejo alguém que pareça apenas como você costumava ser, o motivo também eram elas.

Mas eu não era a única pessoa com mania de repetição no nosso envolvimento, não é? A frase "Comigo pode ser diferente" não pareceu tão nociva no momento em que eu pensei, e não me preocupei mais com a possibilidade de ser exatamente igual comigo, porque tudo aquilo que você disse era bem novo para mim. Me vi com os ossos quebrados depois de mergulhar de vez nos seus sentimentos rasos, e agora não tinha sorriso bonito ou olhar avelã brilhoso que me fizesse agir normalmente quando te encontrava, tinha apenas a porra de uma dor absurda que me lembrava sempre "Ele é o motivo dos outros não darem certo".

Lembro de algo que eu disse para alguém que veio depois de você e eu não consegui deixar ficar: "Vaso remendado tem medo de altura". Eu não podia me arriscar deixar alguém me elevar ao céu de novo para então eu voltar a despencar.

A fila andou, chegou minha vez, paguei tentando não falar tão alto, mas o vidro era grosso e exigia da minha voz. A atendente foi paciente comigo, mas seus olhos foram agressivos quando me virei e os recebi sobre mim, pareciam surpresos e até assustados, me encaravam como se fosse alma penada, e talvez eu fosse exatamente isso para você. Andei para fora da lotérica sem olhar demais o seu rosto, agi como se fosse um estranho que meu olhar cruzou no movimento do corpo.

Pensando mais um pouco sobre tudo, dei-me conta que não precisávamos agir como se nos conhecêssemos ainda, não precisava sorrisos, nem palavras, ou confusão mental, não tinha laço para mais alguma coisa. Eram apenas duas pessoas que fizeram parte do passado uma da outra, e, como toda pessoa com pecados, eu não gostava do passado e muito menos lembrar dele.

Vaso remendado tem medo de altura, mas sabe o que é uma queda e como se consertar de uma.

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⏰ Última atualização: Apr 20, 2020 ⏰

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