Capítulo Único

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Londres, 07 de maio de 1945.

Outono sempre foi minha estação preferida. Árvores com seus galhos nus. O chão pintado de laranja. Casais a passear com seus filhos. Bochechas coradas, gorros a tapar-lhes os ouvidos, cachecóis a esvoaçarem com o vento. É tudo tão maravilhoso. Doí-me ver que as folhas largadas ao chão alaranjado tornam-se vermelhas. Doí-me não ver as crianças saltando entre meio os folhas acobreadas. Doí-me não deslumbrar o pôr do sol. Doí-me saber que tu és o único amigo e companheiro que ouve-me.

Enchem-me de esperanças falsas. Sustento-me delas. Agarro-me a um fio inexistente da mesma. Vivia solitária, cercada apenas de empregados, dos quais não tinha a mínima companhia. Meu caro marido foi convocado à guerra e deixaste-me a espera de teu primogênito. Nascera doente, morrera em menos de um mês. Meu caro nunca teve a chance de segura-lo em seus braços Era seu maior sonho, era meu maior sonho, e não pudemos desfruta-lo.

Às vezes apanho-me a sonhar com o teu primogênito.  Ah se houvesse sobrevivido, do que adiantaria? Nunca conheceria o pai. Já está na guerra há anos, e a cada segundo minha esperança de sua volta diminui. Talvez tenha sido melhor a criança não ter sobrevivido. Não teria de conhecer os males do mundo.

Seria-me extremamente doloroso ter de explicar o porquê de tanta violência, doer-me-ia ter de lhe dizer que seu pai havia sido convocado à guerra e provavelmente assassinado na mesma. Não aguentaria ter de perder a criança a uma batalha. Foi melhor assim, do jeito que havia sido.

Os dias são tristes e amargurentos. Refugiar-se. Ultimamente és a única palavra da qual realmente sei o significado. Refugiar-se. Ver crianças a chorar. Ver homens e mulheres serem exterminados sem motivos. Corpos. Corpos sobre o chão. Corpos, sangue e destroços.

Bombas caem como chuva. Uma tempestuosa e terrível chuva. Tento deixar o passado para trás. Impossível. Estou cercada de crianças a chorar ao verem seus pais explodirem em milhões de pedaços. Vejo soldados sendo massacrados. Bombas. Acredito que quem as faz, nem ao menos, sabe o significado da própria palavra. A cada segundo que se passa pessoas morrem. Crianças nascem e ficam sem pais. Crianças indefesas. Rondando pela cidade. Fugindo do que conseguem. Morrendo. Morrendo por bombas. Morrendo de fome.

Carrego comigo meu caderno de anotações, uma foto e minhas recordações. Foi tudo o que pude recuperar. Bombas. Choveram do céu. Mordomos. Seus gritos de dor atormentam-me. Chamas consumiram a casa em segundos. Fui a única que conseguiu fugir. Muitos ficariam felizes em sobreviver, eu não.

Às vezes choro. Peço para que esse pesadelo acabe. E conforto-me com meu único companheiro: uma fotografia amaçada.

Já perdi as contas de quantas vezes gritos acordam-me. Multidões se atropelando para fugir de mais bombas. Mais de cinco anos fugindo. Mais de cinco anos sem ninguém.

Já é tarde e me escondo no que um dia havia sido uma de minhas lojas preferidas. É impossível dormir. Mais uma noite em claro.

A melhor escolha que tenho é distanciar-me do grupo de refugiados. Estou cansada de fugir. Penso na possibilidade de que meu amado volte. Esperança. Ela guia-me até meu lar.

Talvez ele volte e encontre esse caderno e essa fotografia e saiba que lutei até o final, mas que minhas forças esgotaram-se. Minha jornada foi longa e sinto que já cumpri todas as minhas obrigações. Infelizmente não posso levar isso adiante. É por isso que dedico essa carta aos mortos. As vidas perdidas em prol de motivo algum. As famílias e almas despedaçadas.

Se algum dia você chegar a ler esse caderno meu querido, saiba que eu o amo, o amo com todas as minhas forças. Lamento não poder ter lhe dado um descendente. Quero que saiba que nosso filho era lindo e que lutamos até o final por sua vida. Eu te amo, eu te amo muito. Nunca se esqueça de que um coração cheio de amor é mais forte do que qualquer guerra.

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⏰ Última atualização: Dec 12, 2014 ⏰

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