Antes de iniciar, aconselho que ouça essa música (Today em tomorrow- Grace Vanderwaal) durante a leitura.
Uma vida inteira cabe em uma música, uma xícara de café e duas páginas
- Varges. R.S .Hoje ao passear com a tempo, caminho com a alma... Sei que a vida é o exaurir de uma tarde.
De todos os ontens, o mais nítido em minha memória é aquele em que rodopiei contigo, num campo desbotado, a melodia da existência.
Os matos tinham cor de cobre enferrujado, as flores eram de um rosa desbotado, mas a vida... Ah! A vida era mais colorida, mais sonora; naquele campo, a vida era mais vívida, ou talvez fosse os olhos da minha juventude que fizesse o tempo ser menos opaco. Só sei que para mim e para nós o vento cantarolava com cheiro de um cajueiro.
A primeira visita àquele campo foi com minha mãezinha. Eu era ainda pequenina demais para ver o lugar, só podia ver os olhinhos maternos me aquecendo de amor. Minha mais antiga memória é do cheiro dos cajus caídos no chão; aquelas pequeninas narinas guardam melhor lembranças que minha amadurecida mente.
Naquele tempo, o mundo era tão novo, enquanto minha alma mais antiga que o universo- esse é o segredo que o tempo nos retira.
Depois, passeei menina pelo verdinho, meu mundo, aquele campo, tudo parecia tão grande aos meus olhos!
Nessa minha meninice, queria eu chegar onde o céu encontra a terra, descobrir as perguntas para todas as respostas, como também guardar o tesouro da existência dentro de meu bolso.
Às manhãs, deitava meu corpinho no chão e imaginava que o céu era o mar e nós navegantes de terra, esperando o barco da eternidade nos levar para velejar em suas águas azulzinhas.
No limiar da minha meninice, eu só queria correr pelo campo até encontrar a liberdade. De pé em pé, um dia já não corria menina, corria mulher.
O vestidinho rodado já não me servia, bem como os pés precisavam ser calçados; "Não se segue descalça, pois o mundo só se pedregulha cada vez mais", diziam os mais velhos.
Um dia, não sei porque, parei de correr e segui, passo a passo, do nada à lugar algum. Nesse mesmo dia, encontrei um broto a beira da estrada, desse broto germinou uma paixão e dessa paixão renasceu a inocência.
As cores voltaram ao céu, coraram minha face, curaram minhas feridas dos pés. Nós, vivos e loucos voltamos ao campo, energizados, apaixonados e descalços.
Aquela tarde, eu sei, durou minha vida inteira!
Comemos os cajus, rimos até perder o fôlego e dançamos uma melodia que só existia na nossa mente.
O sol que não ousasse nos machucar! O grande astro do mundo só podia assistir o nosso amor aquecer a vida, sem poréns.
Aquela tarde de outono ventava alegria. Nossa dança fazia meu mundo girar e nosso giro fazia minha vida passarinhar entre passado e futuro. Tudo se compreendia em sentido, ainda que nada fosse explicado.
Já não me importava tocar o céu, desde que eu pudesse tocar seu rosto, não me significava nada alcançar os tesouros do mundo, se eu não pudesse alcançar sua alma com minha alma. Lembro da sua risada, era como o cheirinho das goiabas frescas e suas lágrimas, como o frescor de uma garoa matutina.
Quando o dia tentava anoitecer, sentavamos cansados de tanto rodopiar; eu sabia que podia descansar em seu colo, você sempre estava lá quando eu acordava. Sempre esteve e sempre estaria.
Porém...um dia... você falhou. Neste fim de tarde, acorde e não vi seus olhos a me sublinhar, não sei quanto tempo dormi só sei que foi tempo suficiente para minhas frescas lágrimas já não escorressem por um rosto liso, mas sim por um caminho de dobrinhas flácidas. Percebi que meu sorriso já doía e minhas pálpebras se cansavam de permanecerem levantadas.
Deitada com os cabelos mais enuviados do que as próprias nuvens do céu, eu me pus a divagar pelo brilho opaco de estrelas que jazem mortas a milhares de distâncias.
Meus olhos cintilam um tempo, cujos ontens já são mais do que os amanhãs. Seria o brilho dos meus olhos uma luz a vaguear para outros mundos, tal qual essas estrelas que me observam?
Vi o nascer e o morrer do dia , como vi muitas vidas, como vi do nosso amor.
Permaneci no campo enferrujado até que numa manhã já não me ensejasse a consciência de minha velhice, restando, apenas, o retorno à eterna meninice.
Como um repente que durou a infinitude de um domingo, aquietei-me na certeza: Seu barco um dia há de me buscar para velejar por esse céu azulzinho! Depois disso o tempo surdou.
Naquela noite mais uma estrela brotou no céu e a vida permanece sendo o exaurir uma tarde!

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O Passarinhar Da Tarde
Short Story"Onde a vida passarinha entre os ontens e os amanhãs". Esse conto é sobre o relógio ingrato do tempo; a vida em sua faceta mais cruel e mais amável. É sobre amor, sobre felicidade, mas também sobre a incerteza do amanhã. A Narrativa transita entre...