Prólogo

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"Though I am often in the depths of misery,
there is still calmness, pure harmony
and music inside me."
(Van Gogh)

      Todo dia pela manhã, toca meu despertador com o aviso "tomar rémedio". Abro a caixinha do depakene e tomo meus comprimidos. Como sempre, esses comprimidinhos de nada me lembram do meu destino terrível, que me acompanha diariamente. Levanto-me sem dificuldades, e ligo o fogão para fazer um café. Tenho necessidade de tomar todo dia, mesmo que algumas vezes ele desça amargo pela garganta. Hoje, curiosamente, era um desses dias.
      Preparei meu café da manhã, sentei à mesa e fiquei olhando pela janela. Era possível ouvir alguns pássaros cantando, o que me proporcionou um momento de paz pela manhã. Arrumei uma mochila para sair para trabalhar, coloquei nela um livro (O Último Dia de um Condenado, do Victor Hugo) e saio daquele pequeno apartamento, que de tantas formas me deixa agonizado.
      Chego ao trabalho em poucos minutos. Dou bom-dia a Ana, minha secretária, e sento-me dentro do meu consultório. A agenda hoje estava relativamente cheia. Alguns retornos, algumas primeiras consultas. Já havia algumas pessoas na sala de espera.       Entra o primeiro paciente. Ele já acompanhava comigo havia alguns anos. Uma depressão de difícil tratamento, mas que eu estava sendo capaz de ajustar com os medicamentos. Ele já é dependente de clonazepam, algo que não consigo fazê-lo tentar mudar. Ele não acredita ser capaz de dormir sem eles, e é extremamente resistente a tirar o remédio. Hoje estava calmo. Disse que estava pensando em adotar um cachorro. Estimulei-o a levar essa ideia pra frente. "Um cachorro vai ser uma excelente companhia pra você". Ele mora com a mãe, mas ela é acamada. O garoto precisa tirar forças de onde não tem para cuidar dela. Conversamos um pouco, renovo suas receitas e ele vai embora.
      A segunda, uma adolescente que desenvolveu agorafobia após um acidente de carro. O pai faleceu no acidente. Ela, com algumas fraturas. Fisicamente, ela se recuperou totalmente. Sua alma, no entanto, está cheia de cicatrizes. Ficou muito tempo sem sair de casa, e eu ia até sua residência para atende-la. Hoje, é uma vitória vê-la indo até o consultório. É uma guerreira.
      Depois, um jovem com esquizofrenia, que veio acompanhado da mãe. Os pensamentos dele ainda são confusos, mas ele já não tem tantas alucinações. Elas são, principalmente, auditivas. A mãe disse que ele está menos agressivo. "Ontem me deu uma pequena margarida que cresceu no vaso que ele tem na janela".


      Ao final do dia, despeço-me da Ana e vou embora, cansado. Olho no espelho do elevador onde fica meu consultório, e vejo olheiras que eu não havia percebido antes. Pego meu celular enquanto desço, e me assusto ao me dar conta da data. Vinte e cinco de maio. Hoje fez um ano que recebi meu diagnóstico.

Os dois lados do SofrimentoOnde histórias criam vida. Descubra agora