Canção interrompida

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Lan Xichen só havia visto seu irmão chorar três vezes em toda sua vida.

A primeira havia sido quando ele nasceu, e apesar de tudo, apenas quando ele nasceu. Wangji nunca havia sido uma criança que chorasse muito, e embora vez ou outra seu rosto se contorce-se com desgosto com alguma coisa que desagradava sua cabeça infantil, ele não chorava.

A segunda vez havia sido depois que a mãe deles faleceu, depois de dias e dias de inverno em que ele passou ajoelhado em frente a casa sem que as portas nunca se abrissem, Lan Qiren o tomou em seu braços e o levou no colo de uma maneira em que não era adequada para um líder, mas ele não se importou com o que aquilo fosse parecer, ao menos não aquela vez. E enquanto era levado, Lan Xichen percebeu as lágrimas correrem silenciosas pelo rosto já vazio de emoções de Wangji, até que caíssem no ombro do tio.

A terceira vez era naquele momento, um que o jingshi não era mais silencioso, um em que os soluços doloridos e sôfregos de Wangji preenchiam e batiam contra as paredes, um em que sua cabeça estava deitada em seu colo e seu corpo se curvava enquanto tremia deixando a mostra toda sua fragilidade.

Lan Xichen havia lançado um feitiço para que nenhum som escapasse, porque já haviam passado das nove e não podia haver barulho, porque ele não queria que ninguém soubesse como Wangji estava frágil.

O modo como havia começado ainda parecia confuso para Lan Xichen. Em seu isolamento, o rosto de Wangji se tornara tão vazio que nem mesmo ele conseguia decifrar o que os olhos dourados escondiam. Sua guqin ressoava das cinco às nove. Algumas vezes além das nove. Algumas vezes, Wangji simplesmente deixava de comer ou dormir para continuar tocando.

Aquilo tirava o sono de Lan Xichen. Ele já não tinha muitas noites descendentes de sono desde o isolamento do irmão.

Aquela era uma das noites longas em que o som da guqin ia ao longe. Uma em que o rosto de Wangji parecia dolorosamente vazio. Então, Lan Xichen tentou trazer um pouco de fora para o irmão. Falou de como as flores estavam desabrochando, dos novos discípulos que começaram a treinar, de como Sizhui estava melhorando na caligrafia para poder escrever coisas para ele.

Lan Xichen achou ter visto a sombra de um sorriso naquele momento. Por um instante, pensou ter visto uma breve leveza enquanto os dedos ainda continuavam a tocar as mesmas notas repetidamente.

Mas então, aconteceu.

Uma das cordas da guqin simplesmente arrebentou no meio de uma das notas.

Não era ruim, não seria a primeira vez, não existia um único discípulo em Gusu que não houvesse arrebentado uma corda antes, o próprio Lan Xichen já havia o feito.

Mas os ombros de Wangji tremeram, as mãos se afastaram do instrumento como se queimassem sua pele, uma delas cobriu sua boca e todo seu corpo recuou. Ele se levantou, seus passos atrapalhados para trás, Lan Xichen se levantou com a urgência de segurar o irmão pelos ombros.

A sombra de terror nos olhos dourados fez a garganta de Lan Xichen secar.

— Wangji. — Ele disse em um sussurro. — Wangji, está tudo bem. — Ele negou, suas pernas pareciam fraquejar a cada movimento. — Não se preocupe, eu vou consertar para você. Temos cordas, amanhã já vai estar-

— Eu não terminei. — Wangji disse em um fio quebradiço de voz. — A música. Eu não terminei. Não terminei. Não tem resposta se eu não terminar. Ele não vai ouvir.

Os passos de Wangji recuaram uma outra vez até que a madeira da cama batesse contra as pernas de Lan Xichen e ele caísse contra o colchão fino da cama. O corpo de Wangji cedeu e deslizou por suas mãos como areia escapando de seus dedos, os joelhos dele bateram no chão com força fazendo o baque duro ressoar.

Quando Lan Xichen olhou de novo para o irmão, seu corpo estava curvado e pequeno como se fosse um animal ferido tentando se esconder, as mãos cobriam os olhos para não mostrar as lágrimas grossas que desciam e caíam no chão. O corpo tremia, os soluços não conseguiam ser impedidos de sair por mais que ele apertasse os lábios.

Lan Xichen tentou tocar o ombro de Wangji, mas ele não precisou, o irmão mais novo se arrastou até ele, o rosto se afundando em seu colo, os braços erguidos sobre a própria cabeça enquanto agarravam os fios negros e que agora começavam a se tornar quebradiços.

Lan Xichen não teve reação por um momento, ver Wangji ali não permitiu que nenhum pensamento lógico o ocorresse.

O que ele precisava fazer? O que ele podia fazer?

A resposta veio dolorosa.

Nada.

Ele não podia fazer nada.

O que ele podia fazer pelo irmão não estava a seu alcance. O que o pequeno Wangji precisava já não pertencia mais a aquele mundo.

Lan Xichen sentiu o amargor correr por sua boca, não seria a primeira vez que ele ia contra os princípios de seu clã para dar um pequeno agrado mais luxuoso ao irmão, mesmo que ele nunca pedisse. Wangji era pequeno, ainda era um adolescente, não precisava seguir tão fielmente as regras ou sofrer por elas.

Mas ali estava ele, sentindo o peso delas. E ali estava Lan Xichen, incapaz de dar ao irmão a única coisa que ele realmente desejou.

Sua mão subiu até sua cabeça, iniciando um carinho de conforto que apenas pareceu fazer o corpo de Wangji tremer mais e seu choro aumentar.

Lan Xichen não o culparia. A quanto tempo ele já não via algum simples gesto de gentileza?

Continuou com o carinho por um tempo que ele não se preocupou em medir.

Continuou até que o choro de Wangji diminuísse por um momento, até que conseguiu o fazer beber um pouco de água e se deitar na cama.

Continuou até que ele dormisse.

Continuou até que tivesse a certeza que ele não acordaria, como se velasse pelo sono de uma pequena criança que acabara de ter um pesadelo.

Lan Xichen continuou a cuidar de Lan Wangji.

Porque aquilo era tudo que ele poderia fazer.

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