single track: where i end & you begin

608 125 195
                                    

Dum Spiro Spero (latim)
"enquanto estiver respirando,
eu tenho esperança."

No meio da madrugada, desvencilho-me dos lençóis e me espreito até a janela. Abro-a e sento com os pés pendurados perante o jardim. Você deve aparecer a qualquer momento.

Enquanto a espera carcome minha paciência, estico o braço e puxo o violão, dedilhando sua música favorita. Não sei bem o porquê. Acho que só quero matar o silêncio.

Poucos minutos se vão até que você chegue, a luz da lua refletindo em seus cabelos escuros e ressaltando os ossos marcados em suas bochechas. Talvez você tenha ouvido meu coração gritando de saudade.

Afundando os joelhos no gramado, você se banha de delicadeza ao pescar o primeiro caule, arrancando-o pela raiz. Em seguida outro e então mais um, dois, três. As rosas são ofuscadas pela preciosidade do seu sorriso ao que você as guarda uma a uma na cesta de trama.

Você parece tão pequeno daqui de cima. Como se seu corpo não tivesse ângulos e tendões e músculos rígidos sob a pele de seda. Já estou tocando involuntária e automaticamente quando você levanta o olhar, encontrando o meu. Nossos entreolhares sempre tiveram essa qualidade: são profundos, corrosivos, intensos feito pregos espetados em asas de borboleta.

Seu sorriso aquece tudo dentro de mim. Doçura e covinhas que emolduram a timidez, fazendo par às bochechas coradas. Você é lindo, Inie, eu berro para superar a distância entre nós. Você berra de volta, avisando que já sabe.

A essa altura, nossas histórias estão tão enroscadas quanto uma clave de sol. Somos um ponto fosforescente navegando na escuridão do infortúnio, sem saber direito onde eu termino e você começa.

Lembro do dia em que você puxou minha mão e me levou para encontrar sua mãe. A terra batida do cemitério ficou presa nas solas dos nossos Converses e o silêncio se infiltrou tão profundamente em meus tímpanos que tive que chorar para afastar a morbidez.

Você ainda deixa rosas sobre o túmulo dela mesmo após todos esses anos. Eu queria ter um décimo da sua força, Inie.

Perdido em lembranças, sinto o cheiro salgado da maresia entremeada aos fios de cetim do seu cabelo naquela vez que passamos a tarde inteira na praia. Areia grudando em nossas peles, o som das ondas se quebrando umas nas outras, o sol forte beijando nossas nucas. Todas as sensações voltam e giram em minha mente.

Margaridas. Você gosta delas, certo? A flor representa a pureza, a inocência, a sensibilidade. Os momentos com você que guardo congelados na consciência têm a forma de margaridas.

Como um suspiro, as memórias esvoaçam com o vento conforme você poda as ervas daninhas e semeia brotos novos no jardim. Estou aqui em cima, deitado nas nuvens macias de algodão doce, contemplando o quão vazio é o paraíso idealizado. Você, aí embaixo, colhe rosas e mais rosas entre os dedos esguios e suaves como porcelana, não dando a mínima para o fato de que os espinhos por vezes os façam sangrar.

Num súbito ímpeto, quero despencar da janela do terceiro andar para mergulhar no céu estrelado em seus olhos, para enviá-lo minha voz em frases coesas em vez da cacofonia musical de sempre, para afundar a língua em sua boca até perdermos o fôlego. Sem você por perto, tenho certeza de que eu definharia na mediocridade da minha própria existência. Você é o propósito pelo qual tenho inspiração nas madrugadas, Inie, o propósito pelo qual continuo respirando.

O vermelho que escorre da ponta de seus dedos pinga e se perde no jardim, camuflado pela coloração das pétalas. Dos meus dedos não escorre nada além de música, dançando sob as constelações acima de nossas cabeças e estilhaçando a monotonia da noite. Clique. Este é outro momento que quero eternizar em minha estufa mental de margaridas.

Já passa das duas da manhã quando nossas solas se chocam contra a terra batida do cemitério. Não pensamos demais, apenas forçamos os passos adiante enquanto o vento morde nossas canelas.

Esqueci de avisar aos meus tios que estava saindo. Isso é mentira, é claro. Passei pelo corredor e desci os degraus na ponta dos pés, porque tudo que eu preciso é segurar sua mão mais uma vez, sob a lua, em meio à neblina que paira entre as lápides.

Tudo isso tem um motivo. E você sabe bem qual é:

Eu nunca vou te deixar, Inie. Nunca.

Não importa quantos espinhos rasguem os nossos sonhos.

Somos feitos um para o outro, sem saber onde eu termino e você começa. E eu sempre vou estar dependurado na janela tocando qualquer coisa no violão enquanto você rouba aquelas malditas flores. Mesmo se as margaridas apodrecerem, eu vou aquecer seu coração entre a melodia doce assim como você aquece o meu entre as pétalas de esperança.

Até o fim dos tempos, até que o vermelho que escorre dos seus dedos de porcelana desbote e se dilua na imensidão etérea do nosso amor.

Você deixa as rosas sobre o túmulo e respira profundamente. De certo modo, nós sabemos que vai ficar tudo bem.

花贼; dum spiro spero | hyuninOnde histórias criam vida. Descubra agora