O pequeno Gabriel inclinava a cabeça para o lado contrário à luz, as mãos manobrando os dois objetos – um havia roubado, mais cedo, no escritório do pai, o outro retirara debaixo do colchão da sua cama.
A força da tarde ensolarada entrava pela janela aberta do quarto, incidindo no grampeador disposto na vertical sobre a mesa, que a criança fazia mover com a mão direita, pouco a pouco, como se fossem umas pernas bem longas. Com a outra mão, ele fixava a cruz de madeira, que a tia lhe havia oferecido em segredo, aos membros inferiores improvisados. O menino fitava, assustado, a figura humanoide refletida na parede branca; a sombra agigantava-se cada vez mais próxima da porta repleta de autocolantes de seu seriado preferido – aquele de que ele nunca saberia o final.
Os pais, céticos e ateus, nunca acreditariam no sonho, que se repetia noite após noite, daquele pequeno ser iluminado, sempre escondido no silêncio da rejeição; e, naquela mesma noite, os três cairiam nas sombras eternas do manto implacável do assassino – aquele mesmo, o das pernas longas.
PALAVRAS-CHAVE: assassino, grampeador
NÚMERO DE PALAVRAS: 178
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Sociedade Errante
Short StoryObra com dois contos produzidos para a Copa dos Contos (Edição 2020 - A). Os dois tentam trazer alguma reflexão sobre a sociedade atual.