Floreia

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(O link clicável da playlist do conto está no espaço "sobre" do meu perfil)

"[...]
Tantas vezes eu soltei foguete
Imaginando que você já vinha
Ficava cá no meu canto calada
Ouvindo a barulheira
Que a saudade tinha
Tirei a renda da nafitalina
Forrei cama, cobri mesa
E fiz uma cortina
Varri a casa com vassoura fina
Armei a rede na varanda
Enfeitada com bonina
Você chegou no amiudar do dia
Eu nunca mais senti tanta alegria
Se eu soubesse soltava foguete
Acendia uma fogueira
E enchia o céu de balão
Nosso amor é tão bonito, tão sincero
Feito festa de São João"

(Foguete — Maria Bethânia)


   Respirei fundo e olhei para o lado, minha esposa, Marina, expunha seu sorriso mais encorajador. Ela estava com os cachos presos no seu turbante mais bonito de um marrom que encaixava perfeitamente no tom de marrom da sua pele, eu estava com um dos meus penteados preferidos, tranças nagô na lateral e o resto do meu crespo solto. Queríamos estar à altura da importância do momento. A gente tinha passado um tempo se arrumando, arrumando a casa. A gente arrumou a vida por dois anos pra chegada da Flora. Dois longos e burocráticos anos —pelo sistema de adoção e o preconceito— esperamos poder ter nossa filha com a gente.

   Nunca pensei em gerar uma criança. Em todos meus relacionamentos, com qualquer gênero, sempre disse isso: meu sonho é adotar. E lá estávamos nós, prontas para levá-la para casa.

   Marina me abraçou forte e apertando os braços ao redor da minha cintura, sussurrou no meu ouvido:
— Taís, bora lá? — fechei os olhos e eles marejaram. Eu tinha esperado tanto por aquele momento que agora estava com medo.
— E se a gente não conseguir dar o melhor pra ela? — balbuciei com o rosto enfiado na curvatura entre seu ombro e pescoço.
— A gente vai dar o que tiver ao nosso alcance pra que ela seja feliz e temos que esperar que isso dê certo, é o que podemos fazer. E eu tenho certeza que tu vai ser uma mãe incrível pra ela. — ela segurou meu rosto com as duas mãos e beijou minha testa.
— Tu também. — ela sorriu e eu dei um beijinho na sua bochecha.
Então ouvi alguém nos chamar, avisando que Flora estava lá na sala e que podíamos entrar. Mais uma vez, respirei fundo e senti a mão quente de Marina me dar forças quando entrelaçamos os dedos. Era isso, estávamos juntas nisso e sabia que iríamos errar, mas justamente por estarmos juntas também sabia que acertaríamos muito.

   Quando entramos na sala, vimos Flora sentada numa cadeira, com sua mochila azul e segurando o brinquedo que demos pra ela na segunda vez que a visitamos. Tinha pedido uma boneca, demos uma pretinha e ela adorou, sorria boba passando a mão pelos seus cabelos e os da boneca dizendo que nunca tinha visto uma boneca igual a ela. Naquele dia, eu e Marina seguramos as lágrimas, mas só até chegar ao nosso carro e conversar sobre o momento. Sabíamos o que ela tinha sentido.

   Deixei meus pensamentos de lado na hora que a vi levantar da cadeira e sorrir.

— Vamos pra casa? — chamei-a com meu sorriso mais genuíno.
Flora concordou com animados meneios de cabeça.

   Peguei sua mochila e segurei a mão da menina de sete anos à nossa frente, Marina segurou na outra mão e seguimos corredor afora.

   Quando entramos no carro, minha esposa ligou-o e arrumou o retrovisor centralizando-o, depois parou e pelo espelho olhou Flora afivelando seu cinto no banco de trás. Então vi a mulher que eu amo lacrimejando e ouvi seu fungado baixinho, enxugando a umidade dos olhos no dorso da mão para que eu não percebesse. Segurei sua mão e beijei os nós de seus dedos.

   Ao chegarmos na rua de casa, saí do carro para abrir o portão e pedi pra Flora me ajudar, simplesmente pra que ela se familiarizasse ainda mais e percebesse que aquela casa era tão dela quanto nossa.

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