O Vigário Satânico

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Em nossa vila, moravamos meu pai, minha mãe, minhas duas irmãs e eu. Meu irmão mais velho faleceu precocemente, devido às condições ásperas da vida campesina que levamos. Quando nasci, alguns anos após a tragédia, diz-se que minha mãe sorriu, ainda que as dores do parto a tivessem exaurido. Era um milagre pelo qual ela muito esperava. Sempre quis ter um filho homem, e não fosse pelo infortúnio previamente descrito, eu talvez sequer existiria, afinal, aqui em nosso vilarejo, ninguém tem mais de um filho homem dentro de casa.
A regra é clara, direta e não permite questionamento, ainda que sua razão seja por muitos desconhecida, e são poucos os que se atrevem a falar nela, como alguns bebados na taverna fria e húmida ao pé da montanha, ou viajantes incautos de outras regiões que ainda se surpreendem com ela: todo casal que tiver mais de um filho homem, deve mandar o mais novo ao monastério no topo da colina do lobo. Lá, sob os cuidados do Vigário Ulyanov, são educados para a vida monástica, ainda que podendo optar por seguir outra carreira fora do monastério, assim que completos estejam seus dezessete anos. Nenhum dos que foram, contudo, retornaram, o que faz com que muitos digam, ainda que de forma cautelosamente sarcástica, que a vida no monastério deva ser bem melhor do que fora dele.
Quando contei à minha mãe, na inocência que me fez cair nesta anedota e levá-la mais a sério do que deveria, que eu gostaria de me juntar aos monges - muito em parte porque cria ter melhor alimentação e acolhimento -, ela simplesmente me estapeou. Tinha eu dez anos quando o disse, e chorei muito com o tapa. Advertiu ela, logo em seguida:
- Você não sabe a blasfêmia que acaba de cometer!
Eu só me tornaria ciente do significado real de blasfêmia após o incidente que estou prestes a vos revelar, agora, depois dos muitos anos sonhando e temendo com os acontecimentos daquela tarde de quaresma de 1876.
Tinha eu então dezesseis anos. Decidi me aventurar além dos limites do vilarejo e sorrateiramente subi, degrau por degrau, a escadaria que levava ao monastério no topo da colina do lobo. Era uma tarde escura, mais do que de costume. O céu crepuscular, um manto de púrpuro mistério adornado por poucas estrelas, tinha na lua gibosa seu luminar mais ostensivo, ainda que buscasse se esconder em sua própria sombra. Foi sob a luz da lua que morria que eu ascendi as escadarias.
Recostei-me sobre uma pedra, donde minha visão podia acolher à magnânima arquitetura quatrocentista do monastério à minha frente. Não deveria estar muito longe: da pedra às portas de mogno, levaria dois minutos de caminhada, a passos lentos. Meus passos deviam sê-lo, pois de outro modo atrairia atenção indevida a mim mesmo. Buscava apenas bisbilhotar, na urgência de minha curiosidade jovial, a vida dos monges que, por alguma razão, jamais retornavam às suas vidas comuns.
O edifício era enorme, e como já disse, fora erguido há provaveis quatrocentos séculos, com uma torre em cada uma das quatro quinas, cada uma com uma janela de vidro simples. Era de todo um monumento cinzento e obscuro, e ao cair da noite, ficava quase invisível, não fossem pelas janelas ao longo de sua arquitetura macabra, que luziam com as lâmpadas a óleo de que utilizamos também em nosso vilarejo, possivelmente acesas pelos monásticos que percorriam os corredores secos e escuros do castelo. Havia logo à frente um jardim com estátuas de anjos e santos, alguns derrubados pela ação do tempo, outros ainda permanecendo em pé, estoicos, à contragosto dos elementos. Mantinham uma expressão séria mas melancólica no rosto. Alguns tinham mãos alçadas aos céus, como que num pedido de misericórdia. Aproveitei-me de uma destas estátuas partidas e, escondendo-me atrás dela, me aproximei cada vez mais do monastério.
Quando eram já seis horas da tarde, o sino localizado na torre esquerda do edifício soava, e anunciava a todos os campônios do vilarejo que era hora de se fechar as janelas de casa e de se rezar um Terço, a fim de que os maus espíritos fossem mantidos longe de suas casas. Eu, mais perto do que de costume, escutei-o com uma intensidade ainda maior, o que me fez tapar os ouvidos por um breve instante, mas não sem logo após ouvir um uivo estridente e melancólico do que me parecia estar além do monastério, ou mesmo dentro dele! Minha alma cristã sentiu cada gota de sangue em minhas veias congelar, e ainda que buscasse manter a compostura, me afastei ligeiramente de detrás do anjo decaído, o que me possibilitou ver, alí onde estava uma das janelas, uma luz bruxuleante que, por pouco, escureceu e logo em seguida voltou a brilhar, como se alguém estivesse passando por alí.
Estremeci ao pensar que pudesse estar sendo percebido sem nada perceber, além do peso e da densidade do ar que rondava naquele lugar. Assim, imbuido da pouca coragem que me restava, avancei em direção ao complexo, e me aprochegando de uma outra estátua angelical tristonha, senti-me mais bem acobertado e pude, ainda que com medo, observar o edifício com mais segurança de minha secrecidade. De lá, somente com os olhos para fora da cobertura que me dava a estátua, observei com mais atenção às janelas, que às vezes repetiam o movimento bruxuleante de que me apercebera previamente.
Era escura a noite, e eu já permanecia por quase meia hora naquele ambiente, tendo trocado algumas vezes de posição, sempre me aproximando do complexo. Às vezes ouvia o coiote ladrar na distância, a coruja sobrevoando o cemitério de anjos, e pareceu me ver um morcego rubro como sangue circular uma das torres.
Fora os ocasionais encontros com os filhos da noite, nada me chamava muito a atenção mais do que aquelas janelas semiabertas, de onde eu podia vislumbrar paredes de tijolos negros como obsidiana, lâmpadas a óleo bruxuleando e, às vezes, para meu desespero, o vulto de alguma coisa que parecia se movimentar além delas.
Julguei que já era hora de retornar ao vilarejo, e já pensava numa desculpa para dar aos meus pais relativa ao meu suspeito sumiço durante a tarde. Foi quando, de súbito, me chamou a atenção o que me parecia ser um coro, uma sincronía de vozes que pareciam entoar uma liturgia que me era desconhecida. Não era grego, decerto. Já ouvira o velho Nikodemos a ralhar com seus funcionários previamente nesta língua tão antiga. Tampouco era latim, a língua dos católicos. Restava-me julgá-lo aramáico ou a língua dos hebreus, mas havia algo de sinistro naquele conjunto de vozes. Eram como sons distoantes, longínquos, profundos e ásperos. Sentia-os sob minha pele, vibrando e me dando calafrios. Era fria a noite, e eu portava comigo um casaco, que de súbito vesti, a fim de não sucumbir à brisa congelante. Ainda assim, aquelas vozes parcialmente humanas me faziam tremer de frio, não porque o céu se aproximava, mas porque o inferno congelara!
Tive receio de que o que quer que estivesse acontecendo alí não me fosse trazer bom agouro, e por isso decidi retornar. Antes disso, contudo, percebi que, subitamente, o coro de vozes estrangeiras cessou. Um silêncio se instaurou no ar, e nem os lobos da afamada colina pareciam querer profanar a sacralidade daquele lugar, já profanada fosse pela minha pecadora presença, fosse pelo que quer que estivesse acontecendo do outro lado daqueles muros. Foi quando, num vislumbre repentino, me deparei com uma figura na janela: parecia-me um rapaz desgastado, como que um jovem envelhecido, de longas batas e expressão morta. Seus olhos pareciam fitar o horizonte, mas não se via nada. Leitosos como assemelhavam, percebi-o como cego, mas talvez isso seja apenas suposição minha. Fosse isso ou não, ele pareceu me ignorar. Pude eu ver, à sua frente, sua respiração esparsa tornar-se fumegante devido ao frio da noite. Sua pele era alva, não como a candura resplandecente da mãe de Deus, mas como a tez de um cadaver prestes a ser sepultado. O monastério era sua vala comum.
Tomado de espanto e aterrorizado pelo que via, arrisquei minha cautela ao correr às pressas do lugar, tropeçando algumas vezes e quase caindo no precipício. Uma vez ou duas, olhei para trás, e senti que aqueles anjos que me cercavam pareciam entoar aqueles mesmos cânticos em línguas estranhas: queriam que eu permanecesse, que eu me juntasse à ordem monástica, ou, pelo menos, que eu lhes partisse a cabeça e lhes poupasse de suas vidas estáticas e frias. Tinha certeza de que se permanecesse lá mais tempo do que permanecera, decerto congelaria e me tornaria mais um daqueles ídolos esquecidos no jardim onde a morte não se atrevia a passear.
Temi perder-me na escuridão, mas graças ao bom Deus retornei são e salvo em casa. Notei que me faltava uma bota no pé direito, que pela caminhada calejara. Eu, contudo, sequer me apercebi disso no caminho. Na manhã seguinte, acordei tarde, tendo passado a manhã inteira tendo terríveis pesadelos com aquele lugar aterrorizante. Via mãos e patas de cabra, unidos numa só esfera de carne e ossos de animais, se arrastarem em minha direção. Creio ter visto, durante um de meus sonhos, Buer, Belial, Belzebú. Por fim, acordei espantado quando, ainda em sonho, ouvi as vozes dos adolescentes perdidos que nunca mais retornavam para casa, todos em uníssono, recitando um hino satânico e blásfemo, ao topo da colina, enquanto nosso vilarejo pegava fogo nas chamas do inferno.
Sobressaltei-me, e deparei-me com minha mãe em meu quarto. Por coincidência, ela estava prestes a me acordar. Vi em sua expressão velha e gasta dos muitos anos já passados que ela sabia de minha empreitada noturna, e buscava informar-me de que alguém esperava por mim na cozinha.
Como sempre fomos pobres, recebiamos as visitas em nossa cozinha, onde cheguei e me deparei com o pároco local, experimentando uma sopa de rabanetes que minha mãe sempre preparava para os visitantes. Ele logo se apercebeu de minha presença.
- Sabe do que mais gosto na sopa de rabanetes? A cor! Não é como a canja de galinha, com sua asquerosa cor amarelada, ou qualquer outro tipo.
- B-bom dia, padre! - Gaguejei.
- Que Deus abençoe o seu dia, garoto!
Ele veio a fim de me devolver o sapato que eu perdera na noite passada, durante minha fuga do monte. Depois disso, desconversou.
- Senhora Petrovna, a senhora só tem Dima como filho, correto?
- Sim, padre. Infelizmente seu irmão morreu ainda no parto. É uma dor da qual ainda tento me recuperar, mas fico feliz que Dima permaneça em casa a me ajudar. Desde que seu pai morreu, é a única pessoa com quem posso contar para sustentar esta família, mas estamos indo relativamente bem!
- Entendo, entendo. - Disse, levantando-se e ajeitando a bata. - É realmente uma pena, porque às vezes me vem a ideia de que Dima ficaria muito bem em nosso mosteiro!
Minha mãe riu, um tanto nervosa, e acompanhou o vigário até a porta. Ele então despediu-se de minha mãe, que logo em seguida foi desligar o fogo, que ela deixara aceso por descuido. Ficamos então eu e o padre  logo à frente da entrada. Ele me olhou com seu semblante sorridente, mas de feitio severo - seu rosto denotava as marcas da velhice, e ele parecia sempre sorrir com apenas um lado da boca -, e apertou minha mão. Num instante antes de que fosse embora, pareceu-me ver em seus olhos um olhar leitoso e vazio, como que cego, igual ao que vi durante minha aventura na noite anterior. Aqueles olhos cinzentos pareciam ecoar por todo o vilarejo, que naquela ocasião ficava muito mais escuro, denso e macabro com a presença do vigário. Ele piscou, e foi como se todas aquelas vozes implorando misericórdia cessassem sua lamúria. Senti como se o sol brilhasse novamente através das nuvens, e como se a cruz que ele carregasse no peito não estivesse mais invertida, mas creio que esta última seja um gracejo de minha mórbida imaginação.
Assim, despedimo-nos, e ele seguiu seu caminho até o monastério. Naquela noite, e nas seguintes, todas as vezes que o sino soava às seis da tarde, eu ouvia, à distância, um uivo tenebroso e uma lamúria longínqua, perdida nas eras que o tempo esqueceu de contar.
Hoje vivo na capital. Minha mãe é velha e mora num abrigo para idosos, enquanto minhas duas irmãs seguiram carreira religiosa: uma se converteu ao protestantismo e foi morar na Alemanha, a outra tornou-se freira, e já há algum tempo aconselhou-me que passasse mais tempo lendo a Sacra Bíblia, a fim de que não me perdesse em devaneios do passado. Mal sabe ela que, sempre que abro-a, seja em Jó ou Eclesiastes, parece-me ouvir um murmúrio eslavônico, mesclado com sons ultraterrenos, num coro fantasmagórico que me assombra até que termine minha leitura. Busquei por um tempo ser ateu, mas isso já se provou difícil, já que quando se cede à morte de Deus, deve-se enfrentar com a própria vida o diabo, e minha vida é tão somente mortal.

Odisséia na Escuridão: Contos de Fantasmas, Demônios e VampirosOnde histórias criam vida. Descubra agora