Pior do que o aniversário dos gêmeos, somente o aniversário de Ágata, minha "irmã". Eu adquiri um rancor profundo, o mesmo rancor que tenho por provas de matemática. Eu me isolo, sem qualquer convívio humano. Isso tudo só para não conviver com às amigas — nada amigáveis — dela.
O pior é a festa, que não se resume somente ao dia, mas à uma preparação intensa semanas antes. Eu sou obrigado a ajudar —fazer quase tudo, para ser sincero — na arrumação. Normalmente, os convidados mais distantes começam a chegar às 18 horas. Os parentes, às 10 da manhã. Todavia, às amigas dela chegam no dia anterior.
Eu sou obrigado a servi-las como bem entenderem. Passo o dia em função delas,perco o meu dia totalmente. A pior de todas é Rene, — apelido para Renesmée, não me pergunte de onde os pais dela tiraram esse nome, talvez alguma coisa a ver com Crepúsculo — que exige que eu a sirva com frutas frescas, como se eu fosse algum tipo de mordomo. Para ser sincero, é assim que a minha "família" me vê, um empregado.
A tradição dos aniversários é muito forte em nossa "família". Semanas de preparativos para o aniversário de todos, até mesmo de Hermes, nosso cachorro. Se eu também fosse lembrado, não seria tão rancoroso. Nunca me desejaram parabéns, nunca ganhei um presente. Nem mesmo recebo um bom dia no fatídico!
Ouço batidas no alçapão do sótão. Reviro meus olhos. Não conseguirei me safar hoje. Droga,me desculpe Stephen King, mas terei que ler "A Dança da Morte" amanhã.
Regra importante: Sempre que alguém bater em sua porta, você atende.
Me levantei das cobertas, pedindo desculpas mentalmente para Stephen King. Abro o alçapão, ainda de pijama. Minha mão fica preta por causa da poeira, que, por mais que eu tire todos os dias, insiste em reaparecer em quantidades astronômicas.
—Bom dia, Senhora Mayers —digo para a minha mãe.
Outra regra importante: meus tutores não admitem que os chame pelo pronome de tratamento que meus irmãos os chamam.
A cada dia que se passa, aprendo a conviver com o fato de que eles só me adotaram por que precisavam se auto-promover. Os dois são políticos. Minha "mãe" é deputada, eleita com 4 milhões de votos. Meu pai, prefeito — corrupto à um nível extremo — de uma das maiores cidades do país.
—Não terá praia para você hoje. Vista-se, meus parentes estarão chegando em três horas —retruca, com seus olhos cinzentos.
Seus olhos cinzentos são a coisa mais repugnante nela. São macabros, vazios, de uma forma que não consigo explicar. Seu cabelo é preto, tão preto que você tem que olhar duas vezes para confirmar o que tinha visto antes, pois é como se a coloração sugasse a luz ao redor. De resto, é uma mulher normal, até que bonita para os padrões de beleza impostos por uma sociedade patriarcal e elitista.
Ninguém me acha inteligente, nem mesmo meus professores. Se não fosse por Timeu, meu conselheiro e professor de Latim, eu estaria perdido. Só não fui expulso da minha escola atual por causa de Timeu. Ele insiste em dizer que eu tenho que ficar na escola. Temos que dar uma chance ao garoto é o discurso preferido do pedagogo.
Não sei se eu mereço uma chance depois dos acontecimentos recente. Talvez nem ele tenha tanta certeza. Não é muito fácil de apagar o fogo de um jardim de 15 hectares. Não foi culpa minha, é sério. Tinha uma legião de garotos implicando comigo. Eu tentei me defender. Minutos depois, estava tudo em chamas. Você estava com um isqueiro no bolso, a culpa é sua, me disseram os diretores e coordenadores.
Desço as escadas de mão do meu "quarto" tomando cuidado para não sujar meu terno. 32 graus e eu tenho que usar um terno. Você já tentou usar um terno no calor? Não é uma tarefa simples, se você bem quer saber. O grupo de meninas está sentado na mesa da sala de jantar, o qual está sendo usada por uma maquiadora, que está maquiando — obviamente ela não estaria fazendo comida — algumas garotas que desconheço o nome e não me importo em saber. Às amigas de Agatha são como às ondas, vêm e vão.
Nem olho para elas,passo direto para a cozinha, visando tomar um gole do líquido sagrado, também conhecido como café recém-coado. Me sirvo em uma xícara — não uma xícara, A xícara. É a única que posso usar — e me esgueiro até o jardim. Não, não o queimado.
A decoração terminou de ser posta esta manhã, enquanto eu ainda estava dormindo. A Senhora Mayers acorda cedo quando é dia de festa. Não sei qual o desejo incontrolável que ela nutre por aniversários. São só uma comemoração boba, ora! "Ei, eu completei mais um ano de vida, e estou alguns milímetros mais perto da morte, vamos comemorar".
A ornamentação é a mais clichê possível. Balões rosa, toalhas de mesa brancas, copos rosa, faixas rosas e um bolo rosa. Resumindo, é — quase — tudo rosa. Até a casa da árvore é rosa! Me digam, qual é o amor por este tom? É como qualquer outro, não há sentido! Não representa personalidade! "Estive pensando, acho que vou fazer uma festa com o tema Bordô". Não faz sentido!
Ouço um trovão e sinto um pingo de chuva no meu braço. Essa vai ser das boas, uma bela chuva de verão. O tempo está seco ultimamente, será um belo quebra-galho. Os pingos começam a cair com mais intensidade e de forma mais concentrada. A chuva é quente, perfeita para um banho "outdoor".
A senhora Mayers vem correndo em minha direção, gesticulando para a decoração.
—O que você está fazendo aí? Levante este traseiro, a chuva irá estragar todo o meu trabalho! —grita, sem olhar para mim.
Eu não dou bola, nunca dou. A deputada consegue ter a cara de pau de dizer que o trabalho foi dela. Ora, eu passei 6 horas enchendo aqueles balões! Aqueles malditos balões!
Ouço o trovão e vejo o raio caindo no gramado. Minha madrasta — com enfoque no "má" — calça tênis esportivos, com o solado de borracha, que não permitem que a eletricidade chegue até ela. Todavia, dá um susto e tanto, e ofusca a nossa visão. Um zumbido penetra na minha cabeça.
Eu estou sentado em um banco de madeira, e também não sou atingido pela eletricidade. Ouço gritos distantes, entretanto, não consigo reconhecer vozes. Sinto um cheiro de queimado, mas não me faz sentido. O que vejo é enevoado, e o zumbido persiste. Cambaleante, vou em direção à luz forte que vem do lado da casa. Provavelmente são as luzes de emergência, e é o meu norte neste momento.
Uma figura surge à minha frente. O homem é forte e grande. Veste uma capa feita do pelo de algum animal marrom. É ruivo, e sua face é dura, levemente irritada. Veste uma armadura de madeira — ou ferro, nessas condições, posso estar enganado — cinza, com detalhes em ouro e tecido vermelho. Veste uma saia igualmente cinza e com detalhes em vermelho.
—Você é um tanto quanto estranho —falo, com a voz embargada.
Afinal, o que este cara está fazendo aqui?
—Me sinto agraciado por tal elogio. Devemos ir, agora —responde o homem, com uma voz grossa e marcante.
—Ir para um hospital? Não, eu estou bem, relaxa —retruco, dando de ombros.
—O Ragnarök começou, filho. Tu deves se aliar aos deuses na luta contra os gigantes. Explicações serão concedidas à sua pessoa quando tivermos tempo. Deves vir, filho, honre o seu nome, honre o seu legado, honre Valhalla. Pela glória eterna, filho —urra.
Ele deve estar me levando ao hospital, nada de mais. Só devo estar louco demais para ouvir alguma coisa que preste, ou associar os fatos.
—Claro, sem problemas. Já que você insiste... —retruco, acompanhando o homem.
Um raio cai em nossa frente, e minha visão é novamente ofuscada. Minhas pernas bamboleiam e eu caio no chão, de joelhos.
Tento abrir os olhos, mas só vejo luz. O chão é frio, mas é confortável. Eu estou deitado, e não mais de joelhos. Uma mulher —que usa vestes brancas e longas — vem até o meu lado e toca minha mão. Seu toque é quente e me conforta.
—Que bom que acordastes tão cedo, os deus estão à vossa espera —fala a loura.
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Um deus à sua porta
Teen FictionSávio, Clarisse e Midas são 3 adolescentes que tiveram infâncias problemáticas. Midgard, a terra dos humanos, apresenta sinais de um eminente Ragnarök, o fim do mundo. Os 3 adolescentes são convocados pelos deuses a fim de formar a Nova Era, um exér...