02. Tesouro Caído de um Cavalo Branco

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Tâmasus, Romênia.
        29 de março de 1890

KIARA TAGMUS
 
Noite

    — Hoje, conheci o homem da minha vida — digo a Elizabeth, minha irmã, que ouve tudo calada e atenta. — Não me interessa a minha pouca idade. Tampouco sua posição social e futura ocupação. Muito menos o fato de eu ser uma reles plebeia tamasiana. Eu realmente não me importo. Não me afrontam as futuras responsabilidades, nem o perigo, nem nada de negativo que possa vir com essa relação. Não me afronta o futuro. Só quero viver esse amor até meu último dia de vida. Esse amor forte. Ardente. Em chamas, como na lenda da fênix. Eu posso melhorar aquele homem. Assim como fiz com seus ferimentos físicos, o farei em sua alma. Claro, minha ambição em conhecer o mundo fora da grande parede de energia que cerca Tâmasus tem muita relação com esse meu amor avassalador. Não pense que não o amo, apenas quero unir o útil ao agradável.
    — Uau! Diga logo o que esse homem fez que a deixou tão estonteada! Vamos! Estou curiosa...
    — Não foi estonteio... Foi amor. Por mais clichê que pareça, foi amor. E uma incontrolável atração física também.
    — Me admira os que ainda acreditam no amor...
    — Elizabeth, não use como padrão as suas experiências. Como espera encontrar o amor trocando de parceiro a cada quinzena?
    — Pensei que o foco dessa conversa fosse como você abriu as pernas para um homem que acabara de conhecer...
    Certo, vamos à tal história. Uma residente de região próxima às florestas. Um Príncipe em preparação. Soube por terceiros, que no Mundo Externo eu seria chamada de camponesa. Então, a “camponesa” vai atrás de um javali que escapou para o bosque, já que a caça do dia é responsabilidade minha. Vê um lindo cavalo branco, com o símbolo de Tâmasus queimado em uma de suas ancas, correndo em sua direção. Ele passa por ela como cinquenta soldados em guerra, e ela fica curiosa com o destino de partida do pomposo animal, já que ele assustou sua presa. Era dia, mas as copas fechadas das árvores impediam em parcial a passagem da luz. Ela, ou melhor, eu, fui em frente. Mais uns metros e o vi, deitado, sobre as raízes de um carvalho. Zeus. Meu primeiro pensamento foi Zeus. Ou era ele personificado, ali, pronto para me fazer mãe de mais um de seus vários filhos, ou era um dos seus filhos. Aquela beleza não podia ser humana. Aquele corpo... Aquele corpo só estaria melhor se estivesse menos suado. Aproximei-me e pude ver sangue correndo de sua perna. Pude ver também que ele estava vestido como a Realeza. Não era um deus ou semideus. Era o Príncipe de Tâmasus.
    Aproximei-me mais, e então ele me viu. Olhos expressivos, verde-escuros. Sua boca sussurrou algo. Pouco mais próxima, pude sentir seu cheiro amadeirado. Zeus, só conseguia pensar em Zeus. Mais ainda, e pude ouvir o que ele dizia: “Me ajude”. A voz enfraquecendo. A julgar pela forma que estava deitado, ou melhor, jogado ali, ele havia caído daquele cavalo. Por isso não levantara ainda. Percebi uma ferida em sua perna e, o que quer que tenha feito aquilo, levou um pedaço do tecido daquela parte de sua roupa. Cobras. Aquele era o bosque tão exageradamente conhecido como Bosque das Cobras. Não mais que três pessoas haviam sido picadas, mas já era temido pelos “camponeses”. Quatro, agora.
    Fui até uma árvore trazida da América e tiro um pouco das raízes e folhas. Tinha lindas flores amarelas também. Dizem os viajados, que a medicina natural americana era forte. Algo eu tinha que aprender naquelas aulas de botânica. Esfreguei um pouco as folhas e as pressionei contra sua perna. Ele gritou. Um delicioso grito. Os pássaros em revoada gritaram igual. Rasguei um pedaço de minhas roupas para manter aquilo junto à sua perna. O grito foi como a chave para uma porta há muito tempo trancada.
    — Quem é você? — indagou.
    — Alguém enviada do Olimpo para sua alegria! — digo, com tom de deboche e graça.
    — Viu Crispe?
    Apertei os olhos. “Hã?”
    — Meu cavalo, Crispe. Branco, grande...
    — Já deve estar chegando no castelo, levando em conta a velocidade com a qual ele passou por mim.
    — Vão mandar soldados atrás de mim se eu demorar a voltar. Principalmente por eu ter saído escondido.
    — Você é Príncipe, pode fazer o que quiser, independente de alguns soldadinhos.
    Ele desvia o olhar. Dou água da minha cesta para ele.
    — Queria que fosse tão simples, mas... — ele olha pra copa das árvores e levanta bruscamente. Seus ossos estalam. — Não posso escolher meus próprios caminhos. Filho único, único herdeiro, único sucessor.
    — Quer ir ao Rio Trea? — baixo o tom da minha voz ao dizer isso, como se alguém pudesse nos ouvir.
    — Já disse que os soldados...
    — Danem-se eles. Faça algo por si mesmo, pra variar. Além do mais, você me fez perder o meu jantar. Era um javali bem gordo!
    Nos encaramos, desafiadores. Aqueles olhos...
 

***

    Ri maliciosamente para ele enquanto levantei meu vestido até a altura dos joelhos, para não molhar. Vi ele ficando à vontade. Solto a barra de minha vestimenta e vou até ele, que estava sentado numa pedra na margem, com a perna machucada na água e me observava aparentemente maravilhado.
    — Qual o seu nome? — ele perguntou.
    — Kiara.
    Não retribuí a pergunta. Já sabia a resposta.
    — Kiara. Muito bonito. Simples e bonito. De qual família você é, Kiara?
    — Você não saberia. Tâmasus é um reino grande, só se destacam pessoas influentes ou ricas o bastante para merecer tal privilégio. Quanto a você, Alteza, está fazendo perguntas demais para alguém que acabou de ser picado.
    — E o que você sugere então? — perguntou, apontando com o olhar o machucado em sua perna.
    Fui até ele e joguei água em sua testa e no ferimento. Ora, nós dois somos jovens: eu com dezessete e ele aparentemente com dezoito. Não parecia que ele pôde usufruir de sua juventude direito. Quanto a mim, só não havia surgido a oportunidade ainda. E que bela oportunidade acabara de me aparecer...
    — Não posso me molhar. Essas vestes não secariam até eu chegar no castelo! — diz ele, tentando forçar a si mesmo a ficar irritado.
    — Então as tire, ora! — digo, tão inocente quanto maliciosa.
    Eu me afastei. Ele riu. Se levanta. Sinto meu sorriso malicioso se desfazer e dar lugar à uma boca fascinada. Ele se despiu, e quase não pude acreditar no... Eu nunca havia visto um cavalheiro despido antes. Enfim, não pude acreditar. Entrou na água e nada até mim. Não é tão profundo onde estávamos. Ficamos de joelhos na areia. Ele estava perigosamente perto de mim. Meu coração batia forte. Fechei os olhos, umedeci meus lábios. Então, senti um grande volume de água em meu rosto. Abri os olhos, e ele nadava pra longe. “Me alcance”. Então, como uma ninfa hipnotizada pelo tritão, o sigo, logo atrás das ondas feitas pelo seu volumoso corpo. “Na medida certa”, pensei.
    Chegamos em uma espécie de gruta. Não saímos do rio, apenas viramos à margem esquerda após poucos minutos nadando. Fomos mais para dentro no riacho que se formava lugar adentro. O teto brilhava. Ametistas verdes e azuis. Lindíssimo. Chegamos ao limite do pequeno riacho dentro da gruta. Ele me tirou da água e me sentou na margem. Ficou na água, entre minhas pernas. Era como uma piscina. Me encarou. Entendi o que ele queria ficando naquela posição perante a mim. Ou pelo menos achei que tivesse entendido. Queria que o olhasse de cima pra baixo. Queria que eu me sentisse a superior ali.
    — Você é linda — ele me disse.
  A partir daí, não sabia mais se era só água que molhava minhas pernas.
    — Que lugar é esse? — respondo, como se desinteressada.
    — Minha gruta. A chamo de Mármore.
    — Mármore? Por quê?
    — Por conta das ametistas mescladas. Passo horas aqui, pensando, refletindo, esculpindo...
    — Como ninguém descobriu esse lugar ainda? E por que me trouxe aqui?
    — Não são muitas as pessoas que saem sem rumo em dias de chuva, certo? Nem muitas as que caem no rio, nem que nadam até algo brilhante no fundo. Haviam algumas pedras como as do teto no fundo da entrada daqui quando descobri. Depois, as tirei de lá e fiz meus primeiros trabalhos com elas. Foram lapidadas pela água corrente, não sei por quanto tempo. Quanto a você, achei que gostaria. Não parece ser o tipo de garota que se impressiona com flores ou galanteios. Você parece ser muito mais que uma ambiciosa, embora também seja. Parece ter algo diferente de todos. Parece...
    — Seria uma grande vergonha para você se eu fosse o tipo de garota que se impressiona com flores — interrompi.
    — Sei que não é — continuou. — Você parece intensa. Forte. Determinada. Parece com alguém nobre, embora ninguém nobre se pareça com você. Não naquele castelo.
    — Nos conhecemos há exatas... Não sei, uma hora? E você já está tentando me tornar alguém que você possa preencher hoje à noite?
    Ele pareceu ofendido. Ficou corado por entender a forma como usei a palavra “preencher”.
    — Sabe que não é isso. É que...
    Abaixei meu tronco até ele e o beijei. Falava demais. Pouca ação.
    Assim, sob um teto de brilhantes ametistas, dei meu primeiro beijo. Dei meu primeiro tudo, na verdade. Dei-me a um completo conhecido e desconhecido. Conhecia o que todos diziam dele. Conheci o que ninguém sabia. Conheci mais que um membro da nobreza tamasiana. Conheci mais que o membro de um Príncipe da nobreza tamasiana, apenas. Conheci um homem. O meu homem. O meu tesouro. Sabia que daquele momento em diante, ele seria meu, e eu seria dele.
    Assim, conheci Dériko I.

Artrópota: Árvore-MármoreOnde histórias criam vida. Descubra agora