"Eu gosto do jeito como a gente dança, ainda mais quando estamos dançamos juntos"
Filme - "And Then We Danced" (2019)
Eu detestava mentir.
Não digo isso para parecer correto e modelo a ser seguido. Mas há mentiras que pesam em nossa consciência, por mais clichê que isso pareça. E o pior de tudo é que elas tinham prazo de validade, e quando ele acaba já não há muito o que fazer.
Meu pai sempre quis que eu fosse médico como ele. Costumava dizer para os amigos e para a família que a tradição iria ser seguida por mim e pela minha irmã. Para ela era fácil, era um gênio desde criança, uma daquelas "crianças prodígio" insuportáveis que se destacava no colégio com as melhores notas, fazia da popularidade algo facílimo de ser conquistado. Mas mesmo assim eu a amava e ela sempre me defendia quando eu aprontava alguma.
Como eu posso explicar para meu pai que meu sonho nunca foi ser médico? Não quando ele me deu um kit de medicina de brinquedo aos cinco anos. Quando ele pagou caro pela minha educação a vida toda, quando ele investiu em mim, quando ele depositou todas as esperanças em mim.
Família tradicional americana, o clichê dos clichês.
Eu detestava ser um clichê, mas os amava. E queria que eles me amassem pelo que eu sou. Será que isso é tão impossível como eu acho que é?
O que foi que eu fiz? O que é que eu estou fazendo?
Quando eu tinha quinze anos, fomos ver um ballet em Nova York, em dezembro, parte do programa das festas de fim de ano. Meus avós maternos moravam em West Side e fazíamos isso todo ano. Amantes das artes, eles conheciam todo tipo de artistas, dançarinos, atores e atrizes. Eu ficava encantado com aquele mundo, queria fazer parte dele. Mas naquela noite algo mudou radicalmente dentro de mim, como um relâmpago que iluminou todas as minhas ideias no momento em que eu assistia ao primeiro ato do espetáculo. Um misto de dança moderna, acrobacia e performance clássica. Eu queria fazer parte daquilo, eu queria ser aquilo.
Quinze anos, adolescente, magro, alto e mirrado. Detestava me ver no espelho. Mal saia de casa pra ir à festas ou coisa do tipo. Ficava horas trancado no meu quarto, e quando não se importavam muito com a minha presença eu ia para o meu "castelo". A casa vizinha estava à venda e nos fundos havia um pequeno quartinho. O que ninguém sabia é que lá morava uma dançarina aposentada. Quando ela se mudou, deixou pra trás uma espécie de estúdio de dança. Desde que eu sorrateiramente desci para explorar a casa, descobri esse esconderijo secreto e passei a ir lá. Os espelhos e a barra ainda existiam, e com algumas coisas que eu peguei da garagem disfarçadamente, pude praticar lá. Bem, eu considerava a propriedade minha até alguém vir e comprar a casa, que ainda está à venda.
Desde então, eu fazia qualquer atividade extracurricular que envolvesse dança. Mesmo que as atividades da escola fossem todas voltadas para o ballet clássico, eu aceitava, também participava de alguns grupos de dança independente, fiz alguns amigos. Onde eu pudesse estar dançando, lá estava eu.
Uma noite, saindo tarde de um ensaio, fui caminhando até o ponto de ônibus. Estava vestindo algo normal, moletom, calça, tênis, só que eu tenho a péssima mania de amarrar as sapatilhas do lado de fora da mochila. Não queria que tudo ficasse com o cheiro de chulé de uma tarde inteira de treino. As ruas já estavam desertas, então vi um grupo de caras vindo em minha direção. Meu instinto me dizia pra correr pra longe, mas será que daria tempo? Eles ficaram gritando coisas como "vem aqui" "me dá um beijinho, bailarina" "beija minha pica, viadinho". Tentei ignorar, só que vieram pra cima de mim. Corri, porém me alcançaram. Me deram alguns socos na cara e na barriga, e a coisa poderia ter sido pior se um carro não tivesse encostado e acelerado na direção deles.
- Você tá bem, cara? - uma voz saiu de dentro do carro. Um garoto negro, bem alto, vestido em uma jaqueta da Adidas azul escuro com um boné virado abriu a porta. Eu já havia cruzado com ele na escola algumas vezes.
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The forbidden dance
RomanceIan é um jovem bailarino buscando seu lugar no mundo. Sua família sempre quis que ele se tornasse médico, porém, ele os desafia ao viajar para Nova York tentando ingressar no New York City Ballet. Logo terá que encarar a verdade e enfrentar a famíli...