-Vá embora! - Vociferou Harry do outro lado da porta que o separava de Sam - Eu não quero olhar para a sua cara nunca mais!
-Harry por favor, vamos conversar. Nós podemos resolver isso.
Interceptando a discussão, uma vizinha saiu pela porta do apartamento vizinho ao de Harry e parou no limiar da porta, repousando seus pés envoltos em pantufas no tapete de boas vindas na entrada. O tapete era apenas uma formalidade, já que Rose, a proprietária da casa e síndica do edifício, odiava receber visitas e era conhecida por todos os moradores como alguém com quem não se discutir, pois ela tinha o dom de transformar a vida de todos ao seu redor em um verdadeiro inferno. A velha Rose era uma senhora de maneiras clássicas, extremamente conservadora e impassível. Quando colocava uma ideia na cabeça, era difícil fazê-la mudar seu pensamento e, por esse motivo, poucas pessoas ousavam entrar em uma briga com ela, pois por mais que seus argumentos fossem refutados, preferia se ater a seu juízo inicial, anulando tudo o que era contrário ao seu ponto de vista. Muitos diriam que ela era insuportável, mas a verdade é que ela só era uma mulher sozinha e que enxergava nas discussões um divertimento para tirá-la do marasmo de seu dia-a-dia no prédio recém construído. Um de seus inimigos mortais era Harry, por infelicidade do destino seu vizinho de corredor.
Harry tinha se instalado no prédio há pouco mais de um ano, e esse tempo foi suficiente para dar ao espaço um reflexo de sua personalidade, transformando a pequena residência munida de uma cozinha contígua à sala de estar, uma lavanderia, um banheiro e dois quartos, além de uma convidativa varanda, em um antro de repouso após seus conturbados dias de trabalho. Era fotógrafo e, portanto, tinha que lidar com diversos tipos de clientes, desde os mais desenvoltos para posar até os mais tímidos frente às câmeras, crianças e adultos, homens e mulheres, amáveis e impertinentes. Chegar em casa após uma longa sessão, que poderia durar horas, e beber uma taça de vinho tinto sentado na varanda com a rara iluminação da sequência de um cordão de lâmpadas enrolado no suporte do jardim vertical de plantas pendentes na varanda, enquanto observava as poucas estrelas que apareciam timidamente por trás da poluição do centro da cidade, era um de seus programas favoritos. Ainda mais na companhia de seu namorado, Sam.
O relacionamento de Sam e Harry não datava de muito tempo, mas ambos se conectaram com muita facilidade logo no início, intensificando seu amor em níveis até então desconhecidos para Harry, inexperiente que era. Os relacionamentos passados de Harry não acabaram de maneira muito feliz, o que atrasaram o que viria a seguir, uma vez que se viu despreparado e receoso de entrar de cabeça em um novo amor. O completo oposto de Sam, que se entregava completamente ao amado e tomou praticamente todas as iniciativas, desde o primeiro beijo do casal até a troca de alianças de compromisso. Histórias essas que merecem ser ressaltadas, dado que desempenharam um papel fundamental na maneira como o relacionamento haveria de prosseguir.
O primeiro beijo ocorreu no apartamento de Harry, o mesmo em que agora estavam, discutindo ferozmente. Ainda se conhecendo, em um sábado à noite, após um jantar até então de amigos, com mais quatro pessoas envolvidas, todos deixaram o apartamento e seguiram para suas casas, exceto Sam. Sob a premissa de que estava muito tarde e tinha medo de usar um aplicativo de corridas nesse horário, além do fato de o último ônibus já ter cumprido sua rota, indagou a Harry se poderia passar a noite em sua casa. Harry aceitou inocentemente, e antes de dormir deitaram-se no sofá-cama azul turquesa nada discreto da sala de estar para assistir a um filme na televisão, esperando pela chegada do sono. Harry forneceu uma manta para Sam e pegou uma para si, evitando de dividir o mesmo cobertor no frio que fazia e que entrava suavemente pela fresta aberta na porta de vidro que separava a sala de estar da varanda. Após metade do filme se passar, Sam jogou sua manta para o lado e se embrenhou embaixo da que Harry usava enquanto dormia. Harry acordou nesse momento percebendo que tinha perdido grande parte do filme devido ao sono, e confuso com a atitude de Sam, porém não se incomodou. Muito pelo contrário, virou-se colando sua testa à de Sam, e foi naquele momento, com o filme "Psicose" rodando na grande tela que iluminava o ambiente, que sentiram pela primeira vez o aveludado de seus lábios se encontrando e se completando, como duas peças de quebra-cabeça. Após o fim do curto beijo, que durou pouco mais de um minuto, a cena de Marion Crane sendo brutalmente assassinada pelo famoso Norman Bates se decorreu na televisão, e os dois começaram a rir de como aquele momento não poderia ser mais impróprio para essa demonstração de amor. Foi quase como se a película preta e branca de Hitchcock ganhasse cor diante de tudo aquilo.
Desde então o relacionamento de Sam e Harry evoluiu numa constante, até o fatídico dia em que trocaram alianças, com direito a um flashmob organizado por Sam, com todos os amigos do casal, ao som de The Only Exception, do grupo Paramore, na pacata rua em que o prédio se localizava. Harry adorava esse tipo de surpresa extravagante, apesar do medo das represálias da sociedade ao demonstrar afeto para com o namorado em público, mas como todos os seus amigos mais próximos estavam lá, teriam quem os defendesse. Muitos vizinhos saíram em suas janelas para ver o que ocorria, e felizmente a maioria tinha uma mente aberta o suficiente para achar aquilo lindo, gravando com os celulares de suas respectivas sacadas.
A vida não poderia ser melhor para eles, não fossem os seus pais.
Harry saiu do armário muito novo e, embora odiasse esse termo, foi quase que literalmente que isso aconteceu. Sempre que seus pais saíam, já com os seus dezessete anos e consciente de quem era, após se assumir para seus amigos, pegava as paletas de maquiagem da mãe e corria para pintar o rosto, removendo antes que estes, ainda sem saber do segredo que o filho guardava, voltassem. No entanto, em um dia qualquer seu plano falhou, e ouviu seus pais chegando mais cedo do que imaginava, ainda com os olhos pintados com sombras coloridas e a boca tingida por um batom vermelho vivo. Antes que pudessem vê-lo, escondeu-se dentro do próprio guarda-roupas enquanto esforçava-se para tirar aqueles produtos da pele com um lenço que tinha em mãos. Sua mãe subiu ao quarto e, sentindo que havia algo de errado, começou a procurar por Harry. Acabou por encontrá-lo dentro do armário com o rosto borrado e deu-lhe um sermão que muito o aborreceu. O sermão envolvia os clássicos tópicos "O que as outras pessoas vão pensar?", "Deus não ficaria feliz vendo isso" e "Isso é só uma fase", mas Harry sabia que nada disso importava, e apesar de ter se chateado pelo tratamento que recebeu, ainda era melhor que ser agredido ou expulso de casa, exatamente o que aconteceu com Sam, e que era muito doloroso para recordar. Os finais felizes não aconteciam para todos. Ainda assim, os dois desabrocharam cada vez mais, Harry saindo de casa o mais rápido possível, para fugir da toxicidade de seus pais, e Sam procurando abrigo na casa de uma amiga. Era incrível ver como tinham superado as adversidades que o mundo impunha e eram agora felizes, um apoiando o outro, por mais que não mantessem mais contato direto com seus pais, já que tinham um ao outro, e isso bastava. É claro que não viviam em função um do outro, tinham seus próprios círculos de amizades e não eram frequentes as crises de ciúmes. Um relacionamento extremamente saudável. Mas quando tais crises vinham, assolavam-nos como um tornado, virando suas vidas de cabeça para baixo.
-Sra. Rose, desculpe pela gritaria - Disse Sam, com sinceridade.
-Eu não quero saber! Esse prédio é um lugar de família! Já não basta você e o viadinho aí da frente se encontrarem toda semana, ainda querem chamar a atenção! E se alguma criança aparecer no corredor? - Esbravejou Rose, deixando transparecer as rugas com sua expressão de descontentamento.
Ao ouvir essas palavras, sabendo de tudo o que Sam já havia passado e como aquilo poderia ser um gatilho para ele, Harry destrancou a porta, permitindo a entrada do namorado, embora não tenha aberto-a pela maçaneta. Sam percebeu o som da fechadura se abrindo e colocou a mão na maçaneta para entrar no apartamento, mas não sem antes dizer:
-Tenha um bom dia.
-Que Deus tenha piedade de vocês - Reprovou Rose.
-Digo o mesmo da senhora! - E bateu a porta, entrando na casa.
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Inevitável
RomanceQuando tudo parece dar errado, é quando começa a dar certo. Harry e Sam são namorados há algum tempo e, como em qualquer relacionamento, crises vêm e vão, e durante uma dessas crises, quando o que Harry menos quer é olhar nos olhos de Sam, o casal s...