Capítulo 2: Alerta Vermelho

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-Harry? Onde está você? - Bradou Sam da cozinha, por onde tinha entrado.

Não houve resposta. Sam era um homem de seus 24 anos, com cabelos ruivos e ralos na cabeça, pele branca e demarcada por diversas pintas marrons evidentes no colo e sardas de mesma cor no rosto ovalado e de bochechas enxutas, que se estendia em um corpo ossudo e rígido, com um abdome levemente demarcado por músculos não muito avantajados. Seu estilo era eclético, traduzindo sua personalidade, e neste dia em específico trajava uma camiseta rosé por baixo de uma jaqueta jeans rasgada, uma calça preta e tênis brancos. Um piercing que perfurava de uma ponta a outra da cartilagem de sua orelha era um dos adornos que complementavam seu visual.

Sam, familiarizado com o local, seguiu até o quarto maior do apartamento, onde Harry se encontrava trancado. Bateu na porta e aguardou a resposta, mas como não ouvisse nada além do choro do namorado, tentou pacificamente convencê-lo a sair. Sentado de costas para a porta, sem saber que Harry fazia o mesmo do lado oposto, tirou os sapatos para não sujar o carpete. Sempre fazia isso ao entrar na casa, mas acabou por esquecer no meio da confusão que enfrentava. Era uma das poucas regras da casa de Harry.

-Harry, eu sei que eu estraguei tudo. Mas podemos conversar sobre isso? Eu não quero te perder por uma bobagem dessas. Olha tudo o que a gente passou até aqui.

-Não me importa. Eu quero que você saia daqui! - Retorquiu Harry, no interior do quarto.

-Se você não se importasse, não teria aberto a porta para mim.

Houve um longo silêncio.

-Olha - recomeçou Sam - Eu pisei na bola. De novo. Mas eu te amo demais para deixar isso estragar tudo o que construímos. Você ouviu? Eu te amo. - E repetiu - Eu te amo. Às vezes até mais do que eu amo a mim mesmo. Eu já perdi a conta de quantas vezes eu confundi sua personalidade com a minha, como se realmente fôssemos uma só pessoa. Quando eu pedi chá ao invés de café na cafeteria porque eu sei que você gosta, ou quando eu estava procurando aquele moletom laranja na minha casa porque apesar de ser seu, eu uso mais do que você mesmo. - Ao relembrar esses momentos, sorriu involuntariamente. Não sabia, mas Harry fazia o mesmo do outro lado. - Você já faz parte de mim, Harry. E é a melhor parte de mim.

Harry ameaçou abrir a porta, mas se fez de difícil. Ainda era muito doloroso absorver o que tinha acontecido, e não queria demonstrar fragilidade ou submissão. Se assim o fizesse, Sam poderia repetir o que fez, pensando que tudo seria anulado com um simples pedido de desculpas. Por ser o mais novo da relação, Harry sentia-se muito inseguro, e não queria deixar que Sam se aproveitasse de sua insegurança para fazer o que bem entendesse. Tinha personalidade forte. No auge de seus 22 anos, Harry também tinha pele clara, porém seu corpo não tinha, nem de longe, o mesmo porte que o do namorado. Tinham praticamente a mesma altura, mas Harry pesava bem menos, era esguio e seu cabelo preto de altura média era naturalmente brilhante e contava com ondas largas. Talvez fosse um sinal do destino, mas justamente naquele dia usava o moletom laranja a que Sam se referia. Ou era apenas mais uma forma de o destino brincar com seus sentimentos.

Sam se deu por vencido, e levantou-se. Harry viu sua movimentação pelo buraco da fechadura e sentiu-se decepcionado pois realmente esperava que ele passasse as próximas horas ali, como prova de amor, até que o namorado decidisse abrir a porta. Mas sempre que tinha um roteiro em mente, ocorria exatamente o contrário. Esse é o problema das expectativas, é impossível roteirizar as ações das pessoas. Elas podem até dançar conforme a música em nossa imaginação, mas a realidade é completamente diferente. E as expectativas de Harry eram sempre altas, graças a sua ampla criatividade, seu maior trunfo e sua maior ruína. E nem com uma criatividade tão fértil imaginou que algum dia Sam o pedisse em namoro com um flashmob. Olhou para a aliança em seu dedo e relembrou esse dia, sorrindo e reconsiderando o tratamento que dera a Sam quando este tentou desculpar-se.

Harry ouviu a televisão da sala de estar ligada, e as notícias não eram nada boas. O mundo passava por um momento difícil, uma pandemia ocasionada por um novo vírus. E já havia certo tempo que o governo vinha tomando medidas para conter o avanço da doença, mas o que veio a seguir, nem mesmo a imaginação frutífera de Harry foi capaz de prever. Seu celular começou a vibrar incessantemente com a chegada de mensagens, e ouviu o jornalista reportar, enquanto silenciosamente se dirigia até a sala de estar:

"O governo decretou hoje um estado de alerta vermelho devido aos avanços da pandemia no país, e como medida para conter a doença e seus efeitos desastrosos, o presidente veio a público anunciar o fechamento total de todo e qualquer estabelecimento comercial, além de restringir a circulação de pessoas nas ruas. Equipes do estado já estão posicionadas em diversos pontos do país, prontas para dar início a essa precaução extrema, porém necessária. O recado que fica para todos os cidadãos americanos é: Não saiam de casa! Como forma de garantir que esse estado de alerta será mantido, aqueles que desrespeitarem essa decisão estarão sujeitos a multas e reclusão de 3 meses a 1 ano. Além disso, também serão aspergidas soluções sanitizantes nas ruas de todas as cidades, e como essas soluções podem ser tóxicas para alguns grupos de pessoas, é recomendado manter portas e janelas fechadas durante a desinfecção. O número de mortos já passa de..."

Harry pegou o controle remoto e aumentou o volume do programa, sentando ao lado de Sam e deixando suas diferenças de lado por breves instantes. Harry sempre foi uma pessoa mais sensível que Sam, por sua vez mais frio e calculista. Assistindo ao noticiário e percebendo a proporção que aquilo tinha tomado, seus olhos marejaram e segurou a mão do namorado em busca de apoio emocional, sendo correspondido por um abraço apertado. E ali, envoltos um no outro, perceberam que tinham um ao outro e isso era o que realmente importava. Estavam saudáveis e o mais importante de tudo: vivos. E Harry se deu conta de que devia aproveitar enquanto podia ao lado de Sam, dar valor ao seu bem mais precioso, a sua vida. O amor que sentia por Sam era capaz de superar qualquer divergência, e isso se manifestou ao receber a notícia de que teriam que ficar trancados juntos naquele apartamento por sabe-se lá quanto tempo. Abraçados no sofá, trocando calor e energia, sensibilizados por todo o caos que se alastrou mundo afora, nada mais parecia existir ao redor.

Sam beijou as têmporas de Harry em uma atitude de cunho protetor, enquanto apertava-o com ainda mais força, contra seu peito, e o namorado, entregue aos seus cuidados, deixava as lágrimas escoarem pela face enquanto um turbilhão de pensamentos passava por sua cabeça como um tornado. Abruptamente Harry se desvencilhou dos braços de Sam e foi até o quarto buscar seu celular, que continuava recebendo notificações de novas mensagens, e procurou em sua lista de contato o número de seus pais, pois apesar de tudo ainda tinha a família como um de seus alicerces. Ligou para sua mãe em uma chamada de vídeo e certificou-se de que estava tudo bem, tranquilizando seu coração. Assim que desligou o telefone, Sam apareceu na porta do quarto e se deparou com o objeto de sua afeição sentado no tapete branco felpudo do quarto, encostado na parede estampada por figuras de flores que sustentava uma larga janela por onde os tênues raios de sol entravam, trazendo consigo a iluminação natural para o ambiente. Harry estava com os joelhos dobrados e tinha se escondido no capuz do moletom que trazia no corpo quando Sam entrou e colocou as mãos sobre suas pernas, consolando-o afavelmente, e recebendo em retorno o extremo de seu carinho, em uma fala curta e significativa:

-Desculpa.

Sam interpretou as entrelinhas, e concluiu que aquela era a maneira de ele dar o braço a torcer, mas sabia que aquele pedido de desculpas vinha carregado de um outro sentimento, que não o arrependimento. O amor.

-Eu te amo. - Disse Sam, tirando a mão de seus joelhos e usando-a para levantar o queixo de Harry, que se direcionava ao chão em uma expressão cabisbaixa.

Harry fez que entendeu com a cabeça, copiou a posição do namorado, ficando de cócoras, e enlaçaram-se em um beijo que se desfez em um abraço enquanto deitavam-se no chão, voltados para o céu que se via através da janela aberta.

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